quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Casório

O verão sempre foi quente naquela cidadezinha. Enfiada num buraco cercado de montanhas, vento também não havia para aliviar o meu calor. Suava às bicas, tinha os cabelos grudados na testa por baixo do chapéu claro e o suor me corria salgado pelos bigodes. Um calor dos diabos, como só fazia lá. E nós ali, esperando do lado de fora da igreja. Deus que me perdoe tamanha falta de respeito, mas eu juro por todos os meus santos que me deu uma vontade braba de aplacar a sede na pira de água benta; fresquinha, abençoada que nem se fora do rio Jordão. Sabe lá o Senhor o esforço que fiz pra me conter. Mas era o grande dia e padrinho que é padrinho não ia se deixar abater pelo calor. Mesmo que aquela gota maldita insistisse em continuar escorregando pelas minhas costas.


Acordaste com os olhos ardendo pela luz que entreva pelas cortinas abertas. O estômago ainda embrulhado dos gin tônicas da noite anterior. E das cervejas. E também das doses de tequila. Na boca o gosto do sal e de algo entre sebo e cabo de guarda-chuva, ainda que nunca tenhas provado da iguaria. O quarto cheirava a anteontem, uma mistura de cinzeiro, bebida e suor. Tinhas suado a noite toda e o sol da manhã já te cozinhara ao ponto de te acordar. Por que o maldito verão era sempre tão quente? Descolaste a cabeça da fronha molhada e o movimento trouxe uma breve náusea e uma dor de cabeça infernal. Parecia que tinhas um sino dentro da cabeça. Um sino! Olhaste para o smoking pendurado na porta do guarda roupa, estavas atrasado. Terrivelmente atrasado.


As crianças berrando no quintal pareciam não se importar com o sol que castigava a casa suburbana. As árvores ao redor ajudavam um pouco com a sombra, mas o telhado sem forro transformava a casa num forno. Divertia-se sem camisa lendo a página de garotas de programa, recheada de kellys, amandas, completas e turbinadas. Riu com uma pena daquelas meninas perdidas, precisando de um caminho mais reto, inda que duro. Mas a salvação, aprendeu, vinha a muito custo. Olhou o relógio da sala, na penteadeira ao lado da Palavra. Fez o sinal da cruz em respeito, ao passar os olhos pelo tomo, mas viu que devia apressar-se. Foi em busca da mulher, que até agora não havia trazido as roupas prontas.


Deu um grito alto, pra ver se ela aparecia logo, mas não teve resposta. Foi ao quarto pra ver se ao menos ela tinha separado o terno. Nada dela. Nada do terno. Era só o que faltava. Não pretendia atrasar-se. Deu mais um grito deixando o cômodo. Chegou à cozinha e nada da infeliz. Só uma panela apitando louca, competindo com a algazarra do jardim. Com a barulheira, nem adiantava gritar. Foi ao jardim mandar as crianças se calarem, ou que fossem procurar a mãe. Lá fora é que foi achar a esposa. Sentada nos degraus da escada.

— Mas por Deus, mulher! Onde tu tava que não veio com as roupa pronta?!
— Eu já ia levar. Tá tudo pronto na lavanderia. Só tava terminando de lustrar os sapato.
— Ora, me dá isso aqui que não tenho tempo pra perder. E anda pegar lá as roupa que já tô atrasado. Onde já se viu chegar assim tarde na cerimônia?


Passaste correndo por baixo do chuveiro. Só o suficiente para a água gelada lavar o suor e carregar o cheiro para o ralo. As gotas caiam retumbantes na cabeça, parecendo fazer eco dentro do crânio. O sabonete parecia áspero à pele. O estômago, por um momento ao menos, tinha melhorado. Desligaste o chuveiro e passas-te à toalha, que lembrava uma lixa às costas e uma betoneira à cabeça. Usaste uma dose maior de desodorante, para disfarçar qualquer odor remanescente, e sentiste o estômago revirar ao cheiro. Seguraste a respiração para borrifar o perfume ao redor do pescoço. Mesmo assim, dessa vez, com o cheiro o estômago se rendeu e inundaste a pia ali mesmo, com uma mistura quase toda líquida, que bem poderia abastecer teu carro e fazê-lo pegar. Por sorte, com a ausência de sólidos, a pia logo esvaziou-se. Escarraste uma vez, preparaste a escova de dentes e, para disfarçar melhor, aplicaste uma boa dose de enxaguante bucal. Depois de tudo, já de smoking, mal se percebiam as olheiras. Estavas pronto, apresentável, mas ainda atrasado. A caminho do carro sacaste o celular com os olhos ardendo sob o sol forte.


Eu juro por tudo quanto me é sagrado que, Deus que me perdoe, se não tivesse tanta gente ali eu já teria bebido a água benta. Misericórdia! Já estava me preocupando com o horário. Leopoldo deveria estar chegando. Aliás, não demoraria a própria noiva chegaria. O meu celular tocou por baixo do terno cáqui. Levantei a aba para pegar e pude ver a rodela de suor embaixo do braço. Agora mesmo é que eu não poderia tirar o terno. Peguei o celular pra ver o nome de Leopoldo piscando. “Chegas logo?”, perguntei.

— Atrasei-me!
— Isto percebo eu — respondi.
— Elisabete chegou?
— Ainda não, mas não tarda. Quase todos estão aqui.
— Não deixe que chegue antes de mim. Estou a caminho.
— Que queres que eu faça? Que me atire em frente ao carro?
— Se preciso for. Estou a caminho.

Desligou sem despedir-se. Havia atrasado de nervoso, decerto. Estas incertezas sempre abatem-se aos quase noivos. É o que dizem, ao menos, os mais experientes. Não bastasse o calor, tive de descer a ruela que ligava a entrada da igreja à rua principal e, sob o sol que só arde daquele jeito no vale, me pus a esperar o sedan da noiva. Ajeitei o chapéu para que o sol não me ofuscasse mais, aliviei-me do terno, que ali já não havia mais ninguém a esperar — que ninguém em sã consciência o faria sob tal sol — e afrouxei só um tiquinho a gravata, que tinha medo de desfazer o nó e não conseguir refazê-lo.


Vestiu o terno cinza, ajeitou a gravata vinho sobre a camisa clara, penteou os cabelos com gel e calçou os sapatos lustrados. Usou o lencinho de lapela para enxugar um fio de suor que escapou pela costeleta decepada. Conferiu a Bíblia com os marcapáginas já encaixados. Passando pela cozinha a mulher perguntou-lhe:

— Vai demorar a cerimônia, lá? Vai vir almoçar, né?
— Ah, é! Vou almoçar lá. Aproveitar o bufê.
— Mas podia ter falado, homem de deus, que eu não preparava tudo.
— To falando agora. Vou comer lá.

E saiu porta a fora só pra ver as crianças correndo em sua direção rindo, com as mãozinhas levantadas para ele.

— Não! — gritou. — Não vão sujar o terno que acabei de colocar. — Continuou, esquivando-se da primeira criança.
— E chega dessa gritaceira. Vão pra dentro já!

Nem ouviu o muxoxo das filhas enquanto caminhava para o carro. O veículo deixou para trás um rastro de poeira e fumaça no ar enquanto o subúrbio ia ficando para trás. Na traseira, na lataria, o símbolo de um peixe feito com dois arcos cromados.


O sedan preto virou a curva lá atrás e veio na minha direção. Pensei numa desculpa enquanto colocava o terno e esperava o carro embicar na ruela que levava à igreja. Tirei o chapéu em cumprimento e o carro parou ao meu lado. O vidro baixou e eu me reclinei na janela para falar com o motorista. A brisa que escapou lá dentro foi com um sopro do bom deus. O ar condicionado me acertou no rosto como um beijo mágico e eu quase enfiei a cabeça toda janela a dentro. No banco de trás Elisabete estava bastante bonita, com o vestido branco, bem maquiada e envolta por aquele ar fresco e revigorante. Vestia ainda um sorriso de alegria sincera mas o olhar deixou escapar uma centelha de dúvida ao me ver. Foi então que me dei conta da expressão do motorista, seu pai, mais de dúvida que de alegria, ao me ver ali a barrar o caminho à igreja.

— Bom dia, seu Alfredo, Dona Marta, Elisabete. Chegou o grande dia então!
— Estão todos nos esperando? — perguntou seu Alfredo, com uma flexão inconfundível no todos.
— Todos, mas nós só vamos ter que dar uns minutos a Leopoldo para que se recomponha ao chegar. Acabou de trocar o pneu a duas quadras daqui, que furou. Mas já está a caminho.

Um “coitadinho” escapou do banco de trás, uma cara de pena do banco do passageiro e do banco do motorista nada.

— Só mais uns minutos que ele logo chegará, daí mais uns cinco minutos para que se recomponha e tudo estará acertado. Porque não estacionam naquela sobra sob a árvore? Faz um calor dos diabos aqui fora.

O vidro da janela tornou a subir e o sedan se movimentou em marcha lenta até a sombra. Saquei do celular novamente, agora mais suado pelo nervosismo, e disquei o número de Leopoldo.


Aceleravas trocando de faixas sem dar sinal. Furaste o último sinal ao ver que não havia muito movimento. Já vias a torre da igreja com o relógio acusador quando o celular no console tocou. Dirigindo com uma mão, atendeste a ligação. Do outro lado a voz familiar:

— Estavas a trocar pneus.
— Ótimo, já estou virando a quadra. Chego em dois minutos.

Antes de virar a última esquina encostaste o carro e, sem desligar o motor, saltaste para tirar a calota da roda dianteira direita, e a jogaste no banco de trás. Tornaste a entrar no carro e contornaste a curva para ver, mais adiante, o sedan preto sob a árvore, e uma figura esguia de branco na esquina da ruela da igreja.


Desliguei e acenei um sorriso amarelo ao olhar que me mirava pelo retrovisor esquerdo do carro preto. Não demorou e o carro de Leopoldo despontou mesmo à esquina. Passou em velocidade normal e fez um aceno breve para o sedan. Olhou-me com um sorriso ao passar por mim e subi a ruela logo em seguida. Antes, me virei para o motorista-pai-da-noiva. Com o indicador bati duas vezes no meu relógio e mostrei os cinco dedos da mão espalmada.


Já estava ficando impaciente. Os convidados na porta conversavam mas ele ouvia apenas a carola repassando as músicas no teclado eletrônico de batida pré-programada. O estômago roncava e as pernas se cansavam. Ao menos na nave era mais fresco e os ventiladores afugentavam o pior do calor. Olhou em reprovação quando viu o jovem de smoking chegar apressado acompanhado pelo outro de roupas claras. Nem se dignou a tirar o chapéu na Casa do Senhor! Foram à recepção da igreja e fecharam a porta. Distraiu então o pensamento observando de forma discreta os vestidos floridos de alguma jovens senhoras mais próximas.


— Estás louco? É teu casamento, por deus! O que estavas pensando?
— Desculpe. Atrasei-me, apenas. Está tudo bem agora. Como estou?
— Estás bem melhor que eu, que tive que esperar-te neste sol de rachar cocos na companhia do teu sogro.
— E Elisabete como está?
— Está bem. Alegre. Bastante bonita e feliz.
— Ótimo. Deixe que eu vá cumprimentar as tias e parentes e vamos começar logo com isso.


Passaste cumprimentando tias e primas e primos e tios e sobrinhos e amigos e parentes. Mais dela do que teus. Todos maquiados, purpurinados e arrumados para o grande dia. Viste a nave guardada pelo pastor de gravata vinho e cabelo engomado, meio impaciente. E foste te preparar para tua entrada.


Observou os convidados se assentarem e a igreja silenciar para dar sinal à velha do teclado. Ouviu a música soar, encobrindo o ronco do estômago, e a igreja inteira levantar-se, inclusive as jovens senhoras de vestidos floridos. Da porta principal viu a delegação de testemunhas, noivo, mães, damas de honra chegarem. A marcha nupcial trouxe a noiva em um vestido branco com um decote discreto mas que, do alto do altar, já propiciava uma visão satisfatória. Pregou como se falasse realmente com os noivos, sem tirar os olhos deles — especialmente da noiva, que excepcionalmente bonita não era, veja bem, mas trazia uma bela maquiagem e vestido condizente — o que deixou as futuras sogras lisonjeadas. Pregou sobre o casamento e a comunhão, sobre tornar-se um só espírito. Sobre a fidelidade, de corpo e pensamento, sobre auxiliar-se mutuamente. Pregou sobre filhos e como estes devem ser amados no seio — seio! — da família.


O discurso não terminava...


O discurso não terminava...


...e eu não conseguia parar de olhar pra pira de água benta, fresca, jordaniana, sagrada para aplacar minha sede.


...e tu já pressentias a dor de cabeça que começava a despertar. Ao menos o estômago, já vazio, havia parado um pouco de reclamar.


Finalmente mandou que os noivos se beijassem. Viu os presentes aplaudirem e todos se prepararem para deixar a igreja, depois de muitas congratulações. Fechou a Bíblia, virou-se para a cruz atrás de si, fez o gesto sacro e retirou-se à sacristia, pensando em quais iguarias encontraria no bufê, visto que suas funções sagradas haviam terminado — e muito bem cumpridas, sim senhor.


Despediste-te dos convidados, do teu padrinho e dos pais de ambos com um “até a recepção”. Tomaste tua noiva pela mão e entraste no carro com ela. As latas amarradas no parachoques fizeram um estardalhaço que te fez badalar os sinos da cabeça. Tua agora esposa deu-te um beijo no rosto, ao pé do ouvido, e com uma cara que não pudeste compreender disse:

— É gliter, que tens no pescoço?
— Deve ser, cumprimentei tuas tias há pouco — respondeste rapidamente.


Fiquei assistindo o sedan preto dobrar a ruela e acenei com o chapéu, só para sentir o sol escaldar-me os miolos. A maior parte dos convidados já se ia para a recepção atrás do carro e achei por bem fazer o mesmo, afinal padrinho que é padrinho não se atrasa para a recepção dos noivos. E o sol também já me fazia suar embaixo do terno novamente. Antes de ir, claro, fui benzer-me, que modos me ensinaram para deixar a igreja. Bom deus não me permita deixar a Casa do Senhor sem fazer o sinal da cruz com água benta.

2 comentários:

Rodrigo Oliveira disse...

Acabei de postar este conto pra concorrer ao Duelo de Escritores. Se vc quiser participar da votação é só clicar no link ali do lado e daí escolher o seu texto preferido.

A ideia aqui era tentar manipular um pouco o foco narrativo e o tempo da narrativa. Nunca me enveredei mto por essas técnicas e nem li o suficiente, foi uma primeira tentativa de descobrir os atributos que fazem isso ou não funcionar. Olhando assim por cima, o tempo acho q poderia ser melhor explorado, ao menos para uma primeira vez.

A ideia era o cara de branco encontrar (ou ao menos indicar isso) um par na igreja, mas parece q ele preferiu seguir sozinho.

viegas disse...

Então Rodrigo, legal este exercício narrativo. Estou lendo Quadrilátero, do Adolfo Boos Júnior, romance que trabalha essa coisa dos múltiplos focos narrativos de forma bastante radical.
Amigo, como vão as coisas?
Abraço,
Viegas