quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A árvore de Herr Voss.

“Hoje eu explodi em uma bola de fogo. Foi magnífico.”

— Herr Voss, seu Dreidecker está pronto.

O jovem piloto fechou rapidamente o caderno de capa de couro, guardando o lápis e levantando a cabeça para olhar o abastecedor. Mas olhava além dos olhos claros do homem. Atrás dele, o Fokker Dreidecker brilhava prata no sol das cinco do sul da Bélgica.

Era setembro, havia uma estática no ar que passava ligeiro pelas asas do triplano. Em cada asa as cruzes maltadas se destacavam negras contra o céu que começava a trocar de cor. O vôo era calmo e Werner abriu o caderno de couro com uma das mãos. Mais admirava as letras que as lia, mantinha o olhar nos céus. Mesmo depois dos vôos de esquadrilha, deixava o Jasta 10 para manter seus vôos solo, fazendo a ronda. Gostava de pensar lá em cima. Deixava as coisas mais claras, justificava. Tinha apenas vinte anos e já perdera provavelmente mais amigos que o avô; que o pai certamente. Voava comandado pelo maior Ás da Luftstreitkräfte e, como todos os pilotos da Jasta 10, planava sempre sob a sombra do comandante Richtofen. Há alguns meses já conseguira permissão para voltar a voar sozinho em rondas agendadas. Há alguns meses escrevia no caderno de couro tudo o que pensava, lá em cima ou lá embaixo. Sonhava com o som do vento misturado ao som das balas. E quando olhava para baixo, em sonho, confundia a copa das árvores com as explosões das aeronaves abatidas. As copas não eram verdes, eram vermelhas cor do fogo. Cor do Barão.

Viu longe dois pontos contra o horizonte. Fechou o caderno com cuidado, colocou-o entre as pernas e aumentou de altitude. Era um vôo de reconhecimento britânico, mas quando deram por si, Voss já os tinha sob a mira. Um dos adversários não durou mais do que alguns segundos. Uma rajada certeira obrigou o piloto a buscar algum sítio qualquer para uma aterrissagem forçada. O segundo piloto tentou contornar pela esquerda, mas o Dreidecker alemão em uma manobra rápida se pôs novamente em uma altitude superior, expelindo balas das duas metralhadoras contra a fuselagem inimiga. O piloto britânico mergulhou seguido por Voss. Manobrava para evitar maiores avarias mas não pode escapar da chuva de balas que as duas Spandau despejavam. As duas aeronaves perdiam altitude rapidamente na caçada e não perceberam a aproximação de uma esquadrilha inteira que patrulhava a área. A fumaça preta do avariado avião inglês deu a certeza a Voss de mais uma vitória, mas também alertou a esquadrilha inglesa.
Quando Voss percebeu as sete aeronaves bem acima de sua posição percebeu as inscrições B 56 na fuselagem da força de elite da armada inglesa. Fechou os olhos por um instante, sentiu o vento zumbir forte pelas asas do triplano. Lembrou dos amigos, dos inimigos, dos quase cinqüenta abates. Circulou abaixo da esquadrilha que se aproximava, garantindo para que as cores da Jasta 10 fossem notadas. Abriu o caderno de couro na página marcada e leu as últimas frases do último texto que escrevera. “Hoje eu explodi em uma bola de fogo. Foi magnífico.”

Sorriu com graça, fechou o caderno, respirou fundo como quem fosse mergulhar, mas ao contrário, puxou o manche com violência. O triplano empinou como um cavalo xucro e começou a escalar os céus velozmente. A esquadrilha se dividiu, tentando cercar a nave alemã. Voss continuou subindo em uma espiral ascendente, as duas metralhadoras despejando balas que se alojavam nos aviões ingleses. Um, dois, três, quatro naves alvejadas no movimento ascendente, uma delas sangrando uma fumaça preta de óleo queimado. Outra já fora de combate. Do alto sobrevoou a outra metade da esquadrilha. Mais duas rajadas, mais um inimigo atingido. Não se preocupava em derrubar ou inutilizar todos os aviões. Queria apenas marcar cada um deles, pra que quando pousassem pudessem contar a história do piloto que marcara toda uma esquadrilha. Todo o esquadrão B.

Despertou do devaneio com o som das balas contra a própria fuselagem. Antes de despistar o perseguidor, conseguiu ainda disparar mais uma rajada na asa do inimigo a sua frente. Procurou no céu que começava a escurecer a última aeronave. Avistou-a numa altitude um pouco acima da sua, e começou novamente os círculos ascendentes em direção ao único avião que escapara de suas balas. As metralhadoras alemãs disparavam velozes. Não precisavam economizar munição. O inglês à frente sacudia seu avião de um lado para o outro, tentando evitar os projéteis. Todo o restante do esquadrão B estava se alinhando para encaudar Voss. As metralhadoras inglesas tentando um tiro seguro. Até que Voss viu, no centro de metal da mira de suas Spandau, a marca da armada inglesa, em forma de alvo. Uma rajada certeira alojou os projéteis no círculo vermelho na fuselagem inimiga. Relaxou os músculos da face, os ombros, esboçou um leve sorriso de contentamento enquanto continuava a espiral ascendente. Lá no alto, junto às primeiras estrelas, viu, abaixo, as copas das árvores. E entre ele e elas, todo o esquadrão B avariado. Fechou os olhos, agarrou o caderno, ouviu o motor trabalhar barulhento naquela altitude.

Quando o Dreidecker atingiu o cume de sua trajetória, desligou o motor. Por alguns segundos não ouviu nada. Nem o vento soprava contra o avião parado no ar. Podia quase ouvir as estrelas. Ou as copas das árvores. O triplano apontou, silencioso, o nariz para baixo e o vento começou a uivar sonoro, veloz, novamente. Ouviu o zumbir do outros aviões ao passar por eles num mergulho cego. Sentiu o avião vibrar com rajadas inimigas.

Visto de cima, pareceu o nascer de uma nova árvore, vermelha, em meio às copas verdes. Naquele dia, Werner Voss explodiu em uma bola de fogo. Foi magnífico.

5 comentários:

Rodrigo Oliveira disse...

Acabei de postar esse lá no Duelo. A história não foi comprovadamente assim. Não há resgistros do porquê o motor de Werner Voss desligou-se naquele dia. Quase todos os relatos são ingleses (dos pilotos da esquadrilha). Mas eu achei que seria um bom motivo. A morte de Voss (e acho q de um outro maluco) meio que pôs fim às caçadas solitárias da primeira guerra, dizem. Naquela época os voos em esquadrilhas organizadas já estava vingando e tanto os ingleses como os alemãs, sob o comando do barão vermelho, optaram por essa forma de combate. Mas não que algo disso realmente importe ao texto, acredito, que deve prestar ou não por si só.

viegas disse...

Rodrigo, este teu conto ficou magnífico. Lembrei-me das histórias que lia na minha infância. Uma prosa leve, poética, reveladora do autor que a escreveu. Amigo,parabéns! Lembrei-me de outro texto teu, "Os irmãos Van Loon". Temas inusitados, narrativa irreparável, em ambos os contos. E junto com "Selenita", estes três já estão entre os meus preferidos.
Abraço forte e fraterno,
Viegas

Deveras disse...

Acho que seria assim mesmo que Voss gostaria de ser lembrado; um piloto de muita técnica, mas também, uma espécie de poeta dos ares, um cavaleiro voador que enfrentava moinhos alados.

ficanapaz

Rodrigo Oliveira disse...

Sim, Deveras. Acho q tem um certo romantismo nesse quixote voador. A história de Voss me passa certa nostalgia de um tempo cavaleireisco, de uma justa nos ares.

Deveras disse...

Ah, o outro maluco que gostava de voar sozinho (ás vezes só com um ala) possivelmente era o Georges Guynemer, o às mais querido da França (54 abates). Dizem que até hoje seus compatriotas não acreditam em sua morte, o que falam é que "ele subiu tão alto que se tornou um anjo"... E em se falando de cavalheirismo, Foi o encontro no ar de Guynemer e Ernst Udet que se tornou um dos mais cavalheirescos e lendários duelos dos ares: depois de aproximadamente dez minutos de evoluções, com os duelistas demonstrando habilidades extraordinárias, ao ver que o alemão tinha a metralhadora enguiçada simplesmente lhe acenou e foi embora... Uma outra estirpe de contendores, certamente...

Valeu, ficanapaz