segunda-feira, 23 de novembro de 2020
sexta-feira, 30 de outubro de 2020
quarta-feira, 16 de setembro de 2020
encruzilhada
Foto de Victor Garcia no Unsplash |
eu sou a encruzilhada
por onde passam histórias
sem nem dar
umas pelas outras
vêm e se vão
tão fugidias que
nem bem as percebo
já lá não estão
mas acontece de
vez por outra
alguma mais desatenta
se deixar pegar
com pretensão
lhe corto a cabeça
para meter na parede
ou no papel
à guisa de troféu
em geral acabo só
com uma carcaça disforme
um arremedo taxidérmico
do que um dia foi
uma encruzilhada onde jazem
restos, fragmentos, sangue, pedaços
do que por lá passou
até que um dia venha um diabo a visitar
e perguntar
que infernos se passou ali
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sexta-feira, 24 de julho de 2020
Javali
Mais um exercício de achar desenhos no meio dos rabiscos. Agora digital.
Embaixo o passo a passo.
Quem aí pediu torresmo? |
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segunda-feira, 15 de junho de 2020
despertador
sob estas cobertas
sob estes sete graus
sob estas sete horas
da manhã que me impelem cama a fora
maldigo a razão do despejo
sem nem pensar
no moço triste que desde às cinco
que desde os cinco
[graus
já curva os anos verdes
costurando etiquetas
costurando etiquetas
costurando etiquetas no galpão que mistura no ar
a condensação do hálito
a condensação do hábito
a fiapos de algodão
olho lá fora esta manhã cinza
que o moço triste não vê
porque mantém os olhos na linha
porque mantém a vida na linha
porque esta linha é tudo
que o mantém a si
da janela do coletivo
embaçada
vejo a cidade
embaçada
sem nem pensar no moço triste que leva a vida
embasada
em etiquetas por minuto
tiquetaqueando contra o relógio
contra a agulha
torcendo pra linha não quebrar
sem nem pensar
no tipo triste que desde às sete
vê a cidade embaçada
na janela do coletivo que mistura no ar
a condensação do hálito
a condensação do hábito
a fiapos de ilusão
sob estes sete graus
sob estas sete horas
da manhã que me impelem cama a fora
maldigo a razão do despejo
sem nem pensar
no moço triste que desde às cinco
que desde os cinco
[graus
já curva os anos verdes
costurando etiquetas
costurando etiquetas
costurando etiquetas no galpão que mistura no ar
a condensação do hálito
a condensação do hábito
a fiapos de algodão
olho lá fora esta manhã cinza
que o moço triste não vê
porque mantém os olhos na linha
porque mantém a vida na linha
porque esta linha é tudo
que o mantém a si
da janela do coletivo
embaçada
vejo a cidade
embaçada
sem nem pensar no moço triste que leva a vida
embasada
em etiquetas por minuto
tiquetaqueando contra o relógio
contra a agulha
torcendo pra linha não quebrar
sem nem pensar
no tipo triste que desde às sete
vê a cidade embaçada
na janela do coletivo que mistura no ar
a condensação do hálito
a condensação do hábito
a fiapos de ilusão
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quarta-feira, 6 de maio de 2020
terça-feira, 7 de abril de 2020
A quarentena e A Peste
A quarentena e A Peste
Lendo o clássico de Camus durante a pandemia de Covid-19
“Sempre houve no mundo pestes e guerras;
entretanto pestes e guerras nos acham desprevenidos”.
Era o início da segunda quinzena de abril de 2020, eu havia recém escolhido Dom Casmurro na estante e lido os primeiros capítulos. Na TV as notícias do alastramento da Covid-19 na Europa começavam a preocupar de verdade os brasileiros. No dia seguinte, confirmado o início da quarentena brasileira, Machado acabou voltando pra estante. A Peste iria começar no dia posterior.
No primeiro dia das minhas férias forçadas, antes de começar o teletrabalho que viria pela frente, comecei o livro, com as notícias da TV e as pessoas já levando mais a sério a pandemia, palavra que tinha entrado, quase que do dia para a noite, no vocabulário da população. A obra do prêmio Nobel já foi muito debatida sob o viés de uma analogia à ocupação nazista na França, mas lendo durante esta quarentena foi impossível não enxergar um paralelo mais próximo a nossa própria realidade empesteada.
O povo de Orã, cidade costeira da Argélia dos anos quarenta, em que se passa A Peste, não teve o mesmo aviso prévio que nós brasileiros. Os primeiros sinais vieram dos ratos, começando a morrer em profusão nas ruas, uma flor de sangue a lhes brotar dos focinhos. O problema, no primeiro momento, era de ordem prática de limpeza pública, uma pequena comoção contra a prefeitura por conta dos roedores mortos expostos nas ruas. Uma indecência virem assim morrer em público. O governo local, bastante solícito, iniciou seu plano de recolhimento dos animais mortos às dezenas, depois centenas, diariamente.
Coube ao protagonista, Dr. Rieux, e alguns poucos outros as maiores preocupações acerca daqueles sinais. Sinais claros e inequívocos que eram, enquanto possível, ignorados. Fazendo com que, quando a epidemia de fato se instalara, a cidade tenha sido pega desprevenida. Como diz o próprio narrador:
“As calamidades são com efeito ordinárias, mas dificilmente acreditamos nelas quando nos chegam. Sempre houve no mundo pestes e guerras; entretanto pestes e guerras nos acham desprevenidos”.
Reagir de prontidão à peste é torná-la pública. Imagine-se a comoção, o inconveniente. No caso d’A Peste de Camus, era bem mais que um inconveniente: a prefeitura de Orã estava frente a uma epidemia da Peste Negra, muitíssimo mais letal que o nosso Coronavírus. Mas não pense aqui o leitor que o comentário é um amenizante de um brasileiro privilegiado em uma cidade com ainda poucas dezenas de infectados entrando na terceira semana de quarentena. Todos aqueles que sucumbiram frente à doença ou que por conta dela sofreram merecem ser honrados dando-se o devido respeito e importância à situação. Qualquer baixa causada por um aperto de mão, espirro descuidado ou negligência é um número alto demais.
Negligência, aliás, é o primeiro impulso das autoridades de Orã. O medo da repercussão, o medo de espalhar o caos, que acaba por ajudar a espalhar a doença. Enquanto eu lia isso, um sem fim de conhecidos minimizavam as iniciativas preventivas nas redes sociais. A experiência, talvez por isso, tenha sido tão interessante. Ler A Peste era como um olhar a um futuro próximo. Cada página passada se repetia de certa forma poucos dias depois, na nossa quarentena. O isolamento, o desrespeito ao isolamento; a falta de médicos, os hospitais de campanha nos estádios de futebol; as preocupações individuais frente ao concernimento público.
Com a cidade completamente fechada em quarentena, os moradores de Orã reclamavam das medidas restritivas que, talvez pelo protocolo dos anos 40, me pareceram mais suaves que as atuais, especialmente levando em conta a maior gravidade da calamidade da obra, com exceção talvez pelo fechando total dos portões da cidade, do acesso ao porto e à praia, lacrando completamente a cidade do mundo exterior. De fato, após a mortandade dos ratos ter atingido seu ápice e os roedores deixado de aparecer mortos nas ruas, o povo insistia em prosseguir suas vidas normais, abarrotando templos e cafés da mesma forma que eu via, pela TV ou pela janela, concidadãos indo a praias, parques ou usar qualquer desculpa para sair de casa.
Esse provavelmente é o ponto mais interessante da obra de Camus. Mesmo que às vezes os relatos da peste ou as aventuras de seus personagens sejam bastante explícitos, é sobre a quarentena e o isolamento que o autor se debruça. Na saudade de Rambert, o repórter preso por acaso na cidade por conta do fechamento dos portões, pensando em sua amada e em uma maneira de voltar para ela, e como essa espera e convivência com a doença, a cidade e as pessoas o transforma. Na obstinação de Rieux, que enquanto tem a esposa afastada da cidade tratando uma tuberculose que piora, mantém-se lutando horas infindáveis contra um inimigo avassalador sem esperanças de sucesso, simplesmente por “decência”. O incansável Tarrou, vivendo o isolamento e a doença de perto, seguindo resoluto seu trabalho com Rieux em um misto de entrega e inércia. Os conflitos dos personagens entre agir pelo bem-estar coletivo ou segundo seus impulsos individuais.
“O primeiro efeito da brutal invasão da epidemia foi obrigar habitantes a proceder como se estivessem destituídos de sentimentos individuais”, cita o narrador a um momento.
O tempo passa, as liberdades individuais diminuem, o isolamento se agrava. Enquanto alguns como o padre Paneloux veem a peste como um castigo ou prova divina, Rieux — e com ele o leitor — é obrigado a acompanhar em vigília a luta e derrocada lenta, dolorosa, sofrida, de uma criança inocente sendo mortalmente castigada pela doença. Ao que Rieux conclui:
“Paneloux é um homem de estudo. Não viu muita gente morrer, por isso fala em nome de uma verdade. O mais insignificante padre do interior, amigo dos paroquianos e que tenha ouvido a respiração de um moribundo, pensa como eu e tentaria suprimir a miséria antes de provar as suas vantagens”.
A quarentena no entanto, se ressalta as nossas diferenças, ao mesmo tempo pode aproximar opostos, mesmo Rieux e Paneloux, que acabam atuando juntos contra a epidemia.
Surgem ainda os beneficiados pela crise, como Cottard que, com a paralisação da vida normal da cidade, teve a punição por seus delitos temporariamente suspensa e vive sempre tenso com a possibilidade do fim da peste e da volta à normalidade.
“Apesar do espetáculo anormal, os habitantes tinham dificuldades em perceber o que sucedia. Alguns sentimentos eram comuns, a separação ou o medo, por exemplo, mas as preocupações pessoais venciam tudo. Ninguém se convencia da realidade”.
Um contraste importante tanto na nossa epidemia como na de A Peste em relação a outras calamidades como guerras ou uma enchente, por exemplo, é a falta de um horizonte visível. Enquanto vemos um exército ou as águas avançar ou retroceder, não vemos o afastar de uma epidemia. Pode durar mais uma semana, mais um mês, um ano. O não saber torna a possibilidade da morte iminente uma constante, no caso da Peste Bubônica, e torna difícil programar as medidas de segurança com impactos econômicos e sociais. Como um Cottard às avessas, estar n’A Peste é estar no seio de um inimigo invisível sem saber-se, talvez, já derrotado. Muito se compara a obra e a doença de Orã à guerra, em especial à ocupação nazista, mas essa morte à espreita constante, esse fim iminente e definitivo, também é comum a um outro estado bastante conhecido: a vida. Vivemos sempre a possibilidade de um fim precoce, mas sem uma quarentena normalmente nem percebemos e ficamos, como o povo de Orã, mecanicamente vivendo — sobrevivendo — sem nos darmos conta. Foi preciso uma quarentena para Rieux e Tarrou subirem ao terraço de um velho asmático para apreciar o mar se encontrar com o céu no horizonte. Precisaram lançar mão de suas prerrogativas oficiais para tomar um banho de mar e esquecer, mesmo que por um momento, a doença. Tanto a Peste Negra como a Covid-19 nos revelam alguns dos privilégios e prazeres que tínhamos como garantidos. Se a baixa mortalidade do nosso atual algoz não nos faz respeitar as ordens públicas e não nos preocupa como a praga de Orã, que ao menos nos faça enxergar que o absurdo da vida não está apenas na sua fugaz fragilidade, mas em não reparar na beleza que isso pode representar.
O conflito da obra de Albert Camus, e dos nosso tempos, talvez tenha sido melhor definida por João Tarrou junto a Rieux no terraço sobre a cidade empesteada:
“Sabe que o pelotão de fuzilamento se coloca a um metro e cinquenta do condenado? (...) Sabe que, nessa curta distância, os fuziladores concentram o fogo no coração e fazem, com balas grossas, um buraco onde a gente poderia meter a mão fechada? (...) são pormenores que ninguém fala. O sono dos homens é mais precioso que a vida das criaturas empestadas. Não devemos perturbar o sono das pessoas honestas”.
São lições que brotam nos tempos de peste como ratos dos esgotos. Que tomam as ruas, os telejornais, as página da internet e as redes sociais. Mas quando os ratos deixam de surgir mortos nas portas das casas, quando os mortos não podem ser vistos ou o inimigo não pode ser sentido, esquecemos tão facilmente os tempos de reclusão. Como provavelmente faremos assim que a quarentena for levantada.
Mas o bacilo da peste, lembra Rieux, “não morre nem desaparece, fica dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas, espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papéis, nos lenços — e chega talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda os ratos e os manda morrer numa cidade feliz”.
Que vivamos, pois, nossa cidade feliz enquanto não chegam os ratos. E que não seja preciso uma calamidade para relembrarmos o encontro do céu e o do mar visto sobre um terraço de uma cidade empesteada.
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quarta-feira, 18 de março de 2020
O Barqueiro da Babitonga
Imagem: The Lonely Boat Man, by Asha Sudhaker Shenoy. |
O Barqueiro da Babitonga
23/06/2019
Era uma noite fresca de princípios de inverno. O ar salgado dava sabor à brisa que soprava feito o sussuro de um afogado. A neblina quase tocava a água da baía que movia apenas o suficiente para enunciar-se viva. O apito do trem sangrou a madrugada despertando quem talvez devesse continuar dormindo.
Como se tivesse ouvido, mesmo tão longe, numa ponta perdida da ilha, Vinícius acordou. A lembrança da noite anterior ainda tão nublada quanto a noite. O gosto do último trago na boca, no entanto, estava claro como um dia de sol. Os pelos do braço se arrepiando ao contato da bruma que impedia a visão além das paredes rotas das ruínas do antigo leprosário. Agarrou-se às raízes que agora adornavam a pedra e firmou-se sobre as pernas ainda meio bambas. Tudo o que via além da praça que abrigava as ruínas era uma mortalha branca que recobria a noite. Caminhou um pouco trôpego na direção da capela, desbravando a névoa que não cedia espaço. Mesmo dentro do pequeno oratório da praça a neblina se adensou a ponto de turvar o rosto da santinha. Não podia ver a mais de um metro adiante, mas logo percebeu ter tomado o caminho errado. A capela era contígua à praça e ainda não havia lhe chegado às paredes. Retornou com o braço estendido à frente como quem caminha no escuro. Se tivesse tomado o rumo certo já estaria de volta à praça e às velhas paredes do leprosário que lhe abrigaram do vento horas mais cedo.
A neblina já tinha devorado todos os pontos de referência e ainda se adensava. Tudo o que podia ver era uma sugestão da estrada de terra que se estendia a partir de seus pés. Parou desnorteado tentando vislumbrar algo que indicasse um caminho — àquela altura, qualquer caminho — para sair daquele frio. Ali parado foi quando ouviu o primeiro som da noite agreste e percebeu que o nevoeiro era tão denso que abafava até mesmo os sons ao redor. Era um som leve de cascalho movido, em princípio muito discreto mas logo mais perceptível. Vinha de algum ponto adiante como algo que se acerca sem pressa, mas também sem descanso. Não arriscou mover-se e a espera pareceu levar anos, a angústia já crescente feito a névoa que se erguia por todos os lados. O som ficou mais audível e um chamuscar de luz surgiu na noite, em um par de olhos a um metro de distância e a um metro do chão.
Um focinho de ponta grisalha perfurou a penumbra revelando um animal negro, à exceção dos pelos esbranquiçados pela idade que lhe cobriam a cara. O cão era grande e magro, de pelo hirsuto, com olhos de um brilho vago na escuridão, cobertos por uma capa esbranquiçada como de catarata. Ou como se contivessem a própria bruma capturada nas órbitas. Um espuma branca lhe cobria a boca e gotejava sobre o chão, que vencia lentamente pelos passos compassados e o arrastar de uma das patas traseiras. O animal mantinha o seu ritmo mas havia algo de hostil naqueles olhos nebulosos e naquele pelo arrepiado. Vinícius hesitou por um segundo, mas com a criatura tão próxima, logo deu um passo atrás. E mais outro, como se a neblina que engolfava o cão o pudesse conter. Pensou ter ouvido um rosnado lançar-se na noite e, dando meia-volta, correu às cegas se distanciando do animal que coxeava nas trevas. Os passos largos cobriam de uma passada tudo o que havia de visível, lançando-o a cada momento para o meio da névoa e escuridão.
Não demorou e a um passo sentiu a areia fofa e no seguinte já ouviu o som do chapinhar na água. O calçado encharcou-se com a água fria quase ao mesmo tempo em que a vegetação lhe tocara o rosto. Já não ouvia a besta, mas estava perdido no frio da restinga coberta de névoa. Parou por um momento com ouvidos atentos e os dedos dos pés gelados. Pela tensão, pela corrida ou pela noite anterior da qual já mal se lembrava, tinha a boca seca, a cabeça doía de leve e sentia sede. Mas sabia que a água que lhe tocava os pés certamente seria salgada. Vagou feito uma canoa à deriva, desejando apenas deixar aqueles alagadiços e sentir a terra firme sob seus pés.
Bastou para isso dar mais um passo e sentiu um galho lhe roçar o rosto e o pé tocando uma elevação. A neblina continuava espessa, mas o som das marolas foi substituído pelo dos insetos na noite. Um piar de uma coruja soou em algum lugar e o passo seguinte revelou, no limiar da névoa, uma mata bem mais fechada do que aquela da restinga. Notou o desnível no solo, a perna da frente sempre mais flexionada que a de trás, como quem se encontra frente à uma colina. Não tinha certeza se tinha mais medo do cão ou de estar agora perdido na mata, no meio da noite, sozinho em algum lugar desconhecido. Já nem se importava com o caminho de casa. Queria encontrar um caminho para onde quer que fosse, desde que lhe fosse ao menos familiar.
Caminhou mais uns dez passos morro acima na esperança de escapar do nevoeiro e logo encontrou algo que iluminava tênue a neblina. Seguiu o ponto de luz até chegar à sua origem. Um pequeno candeeiro aceso no chão iluminava um homem sentado em uma pedra recurvado sobre uma garrafa que trazia ao colo. O homem levantou o olhar para Vinícius e acompanhando um aceno de cabeça lhe sorriu por baixo do bigode branco. A pele era marcada pelo sol e maresia, fiapos de cabelo branco lhe escapavam por baixo do boné simples e tinha os olhos claros vivos como duas moedas de prata brilhantes.
— Boa noite — disse o homem, num ritmo rápido, quase comendo as palavras. Vinícius demorou um pouco para responder — boa noite.
Mal podia ver a garrafa que o homem tinha às mãos, mas apenas o vislumbre já lhe despertou a sede.
— Desculpe, mas o senhor pode me ajudar? Acho que me perdi.
— Também pudera, com esta neblina que se está a por sobre tudo!
Ele tinha o sotaque açoriano carregado e Vinícius mais uma vez demorou alguns segundos para finalmente entender o que disse o homem da lamparina.
— O Senhor pode me indicar o caminho para a cidade?
— Mas ora, se não pudesse não estaria eu aqui, não é? Apolônio, muito prazer. Prático nessas terras desde que me lembro por gente.
— Prazer, Seu Apolônio. Vinícius. E muito obrigado.
O homem colocou a garrafa no chão à sombra da pedra e se levantou pegando o lampião.
— Eu lhe levo até lá. Já era tempo de eu voltar mesmo.
— Muito obrigado. E se não for abusar, será não sobrou um gole para aliviar a garganta seca? — arriscou perguntar, apontando para a garrafa. Mas o prático pegou a garrafa e lhe mostrou acrescentando:
— Acho que isso não vai resolver o problema.
A garrafa não continha nenhum líquido, apenas um pequeno barquinho dentro. Uma canoa, na verdade, com um barqueiro em miniatura junto ao remo. A tinta que imitava o mar ainda não parecia bem seca. A peça não era muito elaborada, mas era bem feita. Com uma meia risada, o novo guia recolou o artesanato novamente ao lado da pedra e começou a caminhar.
— Por aqui.
Sem responder, Vinícius seguiu o homem que tentava abrir caminho entre o nevoeiro com seu candeeiro, como um bandeirante abrindo caminho na mata com um facão. A névoa era relutante a abrir caminho, mas aos poucos cedia espaço ao menos suficiente para que o passo seguinte fosse em terreno iluminado. Vinícius seguiu o prático como um navio manobrando na baía. Logo estavam em um declive, mas a umidade toda só fazia aumentar a sensação de sede. Aplacá-la era desejo que lhe turvava a mente tanto quanto o nevoeiro. Demorou muito pouco para sentir o calçamento da rua sob seus pés. Muito menos do que poderia ter esperado.
— Oh! — o guia também pareceu surpreso.
A imagem de casas de paredes coloridas começava a aparecer próxima, como se surgindo de dentro da névoa. Logo chegaram à antiga bica d’água no que fora um dia o centro da cidade, séculos atrás.
— Ah! — o guia exclamou novamente, menos surpreso.
Com o desejo de aplacar a sede agora lhe guiando os passos, Vinícius desceu os velhos e desgastados degraus e, com as mãos em concha, capturou o filete de água que vertia junto à pedra e sorveu com prazer o frescor que lhe escorria pela garganta, feito um condenado que saboreia sua última refeição. Enquanto isso, Seu Apolônio aguardava à margem da neblina, admirando uma paisagem que não estava lá. Vinícius tornou a subir os degraus e o prático recomeçou o caminho.
— Seu Apolônio, ‘brigado, mas acho que daqui já consigo me achar.
— Com esta neblina? Nem pensar! Além do mais, acho que já estamos a chegar.
Sem enxergar mais do que uns passos à frente, o próprio Apolônio tinha nisso mais uma sensação do que uma certeza, mas sentia que a viagem realmente não devia demorar. O rapaz o seguiu, como supunha que o faria, e o ouviu perguntando “Como assim?”, enquanto ouvia seus passos no calçamento secular daquela ruela ladeada de antigas casas coloridas, inundada pela neblina e por um passado quase tão antigo como o próprio país. Passou pela pequena praça de nome francês, seguido por Vinícius, que viu o gato branco sentado sobre a mesa de concreto. Ao cruzar pelo animal, o rapaz viu-o erguer-se nas quatro patas arqueando a coluna, os pelos eriçados das costas, as orelhas baixas e um miado pouco amistoso. Vinícius se apressou e seguiu a luz da lamparina do prático mais à frente, que já quase sumia no nevoeiro e finalmente o alcançou desejando que aquilo tudo logo terminasse.
— Seu Apolônio… — começou a dizer.
— Chegamos — interrompeu o guia.
O som das marolas era baixo e mal podia-se ver a água que tocava a proteção de pedra da margem. O grasnar de uma gaivota soou lúgubre sobre a baía. O pássaro planava baixo, mas de repente bateu asas atrapalhado e trocou bruscamente de direção, perdendo toda sua graça.
Com as ondas, um vulto vinha das águas. Uma mancha negra vinda da névoa, quase disforme. Lembrava um pescador chegando com sua canoa, não fosse pelo manto pesado que lhe caía da cabeça aos pés, condizente, na verdade, com o frio que fazia. O barqueiro conduzia um bote de madeira impulsionado por uma enorme vara que trazia à mão.
— Vamos — disse Apolônio, subindo na embarcação.
Vinícius ficou parado, não ousando seguir o guia.
— Está tudo bem, pode subir. Não há nada pra ficar aqui.
Vinícius olhou em volta, tudo o que via era a parede branca de névoa.
— Vamos, oh, gajo, que é a única forma de sair daqui.
Sem muita certeza, resolveu seguir a única luz que ainda brilhava na imensidão branca, na mão do açoriano. Subiu ao barco sem mover a água sob o casco e viu o prático entregar um par de moedas ao barqueiro, sentindo o leve deslizar do bote sobre a água. Em segundos a margem foi engolida pela névoa e ele não teve muito a fazer exceto sentar-se ao lado do homem que lhe guiara até ali.
O barqueiro seguia seu rumo guiando em silêncio. Só se ouvia o som leve das ondas e o grito distante de uma gaivota. Logo, nem isso. O silêncio se tornou absoluto e o frio intenso. Vinícius começava a tiritar. Que o barqueiro não se incomodasse, coberto com o pesado manto, era compreensível, mas Apolônio, em mangas de camisa, deveria estar tremendo. A embarcação parou quando a neblina se adensou. Estava tão intensa que começava a encobrir o barqueiro e até o próprio prático ao lado de Vinícius.
— Seu Apolônio…
— Tu sabes, eu passei mais tempo do que imaginei cá nesta baía. Conheci cada banco de areia. Só não tinha ouvido ainda um silêncio como este.
Vinícius tremia de frio mas o velho parecia não se dar conta.
— Por que a gente parou? — perguntou sem parar de tremer.
— Porque esta é nossa última viagem.
— Eu, eu, quero voltar — balbuciou entre medo e frio.
— Oh, mas você vai voltar.
— Mas, e… e a última viagem?
— Ora, a nossa última viagem. Não a sua.
Vinícius se virou para trás, a neblina fria a lhe penetrar os ossos, e já não via o barqueiro. Deslocou-se com cuidado até onde ele devia estar, cruzando a névoa e encontrando junto à popa apenas o longo remo e o manto caído. Voltou-se para o prático e divisou na névoa só a luz da lanterna, tentando manter a neblina afastada da proa.
Estava só, no meio da baía, cercado pela névoa, no mais inerte silêncio. A névoa parecia ter-lhe tomado conta e lhe entranhado no corpo, já lhe transbordando pela boca a cada baforada de encontro ao ar gélido. Ficou parado ali, encolhido e tremendo, o que pareceu uma eternidade. Não sabia mais o que fazer, mas não poderia ficar ali para sempre. O mundo era névoa, estagnação, frio e silêncio. E nada mais. Quase se abraçou à lamparina para se aquecer, o mínimo que fosse. Foi à outra ponta da embarcação e vestiu o pesado manto do barqueiro, cobrindo com o capuz a cabeça, sentindo o volumoso tecido lhe aquecendo um pouco as orelhas. Aos poucos o frio pareceu menos hostil, ao menos o suficiente para tomar alguma atitude. Colocou a lanterna à proa para lhe guiar o caminho, tomou do remo e deu propulsão à barca. Voltaria à costa ou se perderia na neblina tentando.
Guiou-se como pôde por tanto tempo que quase se esquecera de como chegara ali. Mais um bom tempo se passou até que o som das águas ecoou novamente em seus ouvidos, talvez até um grasnar, dúbio e distante, tivesse despontado em algum lugar. Mas na popa do bote, sob o manto, quase nada se podia ouvir. Ao menos o frio já não o castigava tanto, se um dia o fizera. O vislumbre de um píer surgiu discreto na névoa. Ao impulso do remo a barca aprumou-se e navegou devagar. Aos poucos, duas figuras começaram a se fazer distintas. Dois homens, lado a lado, um deles com um candeeiro à mão. O outro tinha os olhos arregalados procurando algo na névoa.
A barca se aproximou até quase tocar o cais. O homem do candeeiro fez sinal ao outro:
— Pode ir, está tudo bem.
O homem de olhos arregalados subiu receoso ao bote e Vinícius estendeu a mão. Recebeu em retorno uma moeda do homem com a lamparina e, com um golpe sutil do remo, impulsionou novamente a barca às névoas da Babitonga.
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terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
Cidade Gris
cidade gris
carrega a cidade no peito
convulsionado
pela tosse cinza
pela cinza descarga
de um rio de carros
de um rio d'escárnios
que rolam pelas sarjetas
e desaguam em si
o peito cinza
pulsa
pesa e
pulsa
cada vez mais lento
até que as brasas cedam
e as cinzas ascendam
com uma lufada de vento
dançando na fumaça
de uma cidade sem cor
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segunda-feira, 20 de janeiro de 2020
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