As Três Petúnias Carpideiras
Noroé é uma cidadezinha interiorana, pequena e pacata. Tem a sua praça sob uma figueira velha, um coreto onde se apresenta uma bandinha no aniversário da cidade ou na festa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a tradição mais típica do lugar, datando lá do início da sua colonização. Vive a cidade principalmente para essa tradição. Cultiva seus valores, orgulhosa de sua origem. Belos jardinzinhos tem Noroé. Ruas bem cuidadas, cafés da tarde generosos e velhas orgulhosas de sua Noroé. Tudo é tão bem cuidado na cidade que até a Casa das Petúnias tem um jardim digno do concurso anual, ainda que jamais tenha ganho a premiação. Com aquelas cerquinhas brancas baixas, um gramadinho bem aparado e um vistoso canteiro de petúnias, que legou à casa o apelido carinhoso.
Mesmo tão bonitinha, a Casa das Petúnias não era vista com bons olhos pelas bondosas senhoras de Noroé. O caso é que a Casa das Petúnias, era, no chamar das mesmas boas senhoras, uma casa de meretrício. E no chamar de alguns frequentadores menos discretos, um jardim dos prazeres. Com mais poesia ou menos lirismo, fica explicada a bronca das boas noroienses.
Ainda que justifique-se a bronca e que a casa seja, de fato, o que é, sensato será explicar um pormenor relativo à Casa das Petúnias. Ela não é, ao menos oficialmente, se é que há alguma oficialidade para tais assuntos, o bordel da cidade. Este seria o Montreal, pouco mais às cercanias do município, com um jardim não tão bonito mas sob uma moderna placa de whiskeria. A Casa das Petúnias era um estabelecimento parecido, com propósitos bastante próximos, mas um pouco diferente. Lá atendiam apenas, e toda equipe era apenas, as três petúnias, como eram chamadas as três damas — sempre eram tradadas assim — que dirigiam, atendiam e moravam na casa. E as petúnias atendiam apenas quando, quem e se quisessem. Não que fossem de selecionar demais ou de menosprezar qualquer um. Simplesmente era assim que eram e todos os clientes acostumaram-se desse modo. As flores têm sempre a época certa para polenizar, admirar e colher. Com as petúnias não seria diferente. E assim ficaram acertadas as coisas em Noroé.
Mas quem fosse conhecer a cidade perceberia que a bronca das senhoras de Noroé era sempre muito velada. Sempre a pé de orelha ou portas fechadas. Bem ao contrário do que acontecia quando falavam da Montreal: lá só tinha puta. Mas na Casa das Petúnias viviam as três petúnias. O estranhamento que essa diferença pode vir a causar no recente visitante a Noroé é, no entanto, explicável e bastante compreensível. Pode-se adiantar que vai muito além da simpatia, dos modos discretos e do respeitoso trato que as três damas tinham com todos na cidade. Como é comum na maioria das cidades do tamanho de Noroé, poucos são os temas que causam comoção ou mesmo interesse por parte dos moradores. Além dos cuidados com os jardins, as rodas de pessoas nas varandas invariavelmente matraqueavam sobre o mais recente casamento ou problema conjugal que, justiça seja feita, vez por outra acabava mesmo por tangenciar a Casa das Petúnias. Fora isso as conversas costumam acercar-se de alguma dor nova de alguma velha, da última doença de algum conhecido ou, obviamente, da morte de algum morador. Mesmo a morte de algum primo distante de um morador já era motivo de interesse. Em suma: quem nasceu, quem casou e quem morreu. Como em toda cidade interiorana. Com os nascimentos, as petúnias nunca tinham nada a ver. Com os casórios tão pouco. Bem, talvez com algum problema conjugal, vá lá, mas ao menos não eram elas as principais culpadas. Eram, como diziam, uma consequência mais do que uma causa.
Talvez a explicação mais clara para a paciência das mulheres de Noroé esteja, surpreendentemente, na última das três etapas. Curiosamente, as três petúnias tinham um papel fundamental na morte, ou ao menos nos ritos pós-morte, da cidade. O caso é que não havia melhores carpideiras num raio de trezentos quilômetros dali. Não tinha para ninguém. Velório de verdade, só com as três petúnias. Enterro bonito, daqueles de dar orgulho ao defunto, só com as lágrimas das petúnias ao lado do caixão. Assim, as famílias sempre tratavam as petúnias com o devido respeito de seus trajes negros comportados, ainda que alguns, às escondidas, cochichassem sobre suas vestes mais floridas e vistosas. Mas as petúnias sabiam muito bem separar as coisas. E com essa mesma seriedade, Noroé tentava respeitar as petúnias.
Outras até tentaram ocupar o posto. Umas senhorinhas muito respeitáveis, dedicadas mesmo, quase se borravam no esforço pelo choro perfeito. Mas não chegavam aos pés das três petúnias carpideiras. Algumas senhoras, nunca de verdade identificadas, chegaram a chamar uma dupla de carpideiras de uma cidade ali próxima para fazer frente ao trio. Alguns chegaram a pensar que a hegemonia das petúnias poderia ser realmente ameaçada. Mas a dupla aguentou apenas alguns meses. Logo as pessoas perceberam que não havia como compará-las com as três grandes carpideiras de Noroé. Os pedidos sempre vinham, invariavelmente, à Casa das Petúnias. Nesses casos, geralmente feitos pelas mulheres, para evitar que os maridos e filhos fizessem um "pacote" com os demais serviços da casa.
Dessa forma, no seu modo peculiar, as coisas corriam relativamente bem em Noroé. As petúnias animando a vida e velando a morte de seus moradores. O tempo seguia manso e besta na cidadezinha de jardins bem cuidados. Até que o doutor diagnosticou o problema de Deise. Era uma tosse incômoda, às vezes acompanhada de certa dor e um pouco de sangue escarrado. Mas a doença ignorada e negligenciada há tanto tempo começava a cobrar o seu preço. Doutor confirmou: não havia o que fazer. Deise teria provavelmente mais uns meses de vida apenas. Uma vez que a doença entrasse na pior fase, daria cabo ao seu sofrimento rapidamente. Deise era uma das três petúnias.
A cidade se dividiu entre tristeza e júbilo, por vezes velados, outras escancarados. A primeira das petúnias começava a murchar. E sem as três, logo Noroé perderia o seu jardim. Entre os homens, a comoção era geral. Entre as mulheres, algumas se apiedaram, outras comemoraram em um silêncio muito bem escondido e umas poucas se preocuparam mais com o outro ofício das petúnias: poderiam apenas duas petúnias sozinhas serem as grandes carpideiras de Noroé?
A mesma pergunta ecoava entre as quatro paredes da sala, no silêncio que pairava entre as três petúnias. Além da tristeza, as petúnias preocupavam-se com o legado de Deise e da Casa. Como continuariam as três petúnias, sendo apenas duas? Os chás esfriavam nas xícaras pintadas com motivos silvestres, os olhos procuravam respostas no tapete tricotado em formato de folha. Foi Deise quem quebrou o silêncio. Precisavam encontrar uma substituta. Precisariam de alguém para entrar em seu lugar. A determinação na voz manteve as duas interlocutoras caladas por alguns minutos. Foi Rosa quem arriscou, dizendo que não poderiam continuar sem ela. E mesmo que pudessem, não havia ninguém que poderia substituí-la. Deise sorriu benevolente e sincera, tomou o rosto de Rosa entre as mãos e puxou-o para si. Olhou muito de perto aqueles olhos marejados que se esforçavam para conter as lágrimas. Pousou com os seus lábios macios e volumosos um beijo demorado sobre o olho da amiga que, ao fechar-se, não pôde mais suster o choro que escorreu pelo rosto até desprender-se do queixo e mergulhar na xícara de chá já frio. Hortênsia se aproximou abraçando as duas com os braços bronzeados, perdendo o rosto nos cabelos perfumados das amigas, deixando que os seus rostos repousassem sobre seu peito soluçante, compassadas pelo coração apertado que batia forte. Deixaram-se ficar assim entrelaçadas por vários minutos, unidas como em um vaso. As pétalas de uma delas começando a cair, como as lágrimas das outras duas. Deise afastou-se devagar, secou com as mãos os rostos das companheiras, qual botões cobertos pelo orvalho. Sorriu.
A situação, no entanto, não mudara. Deise logo partiria. Era preciso que Rosa e Hortênsia mantivessem a Casa das Petúnias. E para isso seria necessária uma nova petúnia. Além de manter a sua fonte de renda, a decisão, comandada por Deise, tinha um propósito bem mais objetivo, especialmente para ela. Em breve, ela estava bem ciente, ela mesma seria velada. E precisaria dos serviços das Petúnias Carpideiras. Se tinha alguém que merecia um enterro triunfal, com as melhores carpideiras que se pudesse encontrar, esse alguém era ela, exigiu. As duas parceiras não puderam discordar. Não só precisavam de uma nova carpideira, mas precisavam para breve. A questão é que, se já era difícil encontrar uma carpideira que chegasse aos pés das Três Grandes Carpideiras de Noroé, ainda mais difícil seria encontrar alguma que, além disso, fosse dona dos dotes e dos talentos necessários para se tornar uma petúnia completa. A tarefa parecia impossível.
Demorou um pouco para que o silêncio se quebrasse sob a primeira sugestão. Uma das garotas do Montreal teria de ser eleita para substituir Deise e recompor As Três Petúnias, quando chegasse a hora. Passaram o nome de cada uma das garotas do Montreal. Algumas tinham os dotes, outras os talentos; pouquíssimas reuniam os dois. E mesmo dentre essas, nenhuma tinha ainda a experiência ou a inclinação, tampouco o dom, para carpideira. Não seria na Montreal que encontrariam alguém em quem ardesse o fogo da mulher e vertessem as águas das carpideiras. Não era ali que colheriam a próxima petúnia. Nas cidades vizinhas, as coisas eram ainda piores. Nenhuma das casas oferecia alguém que tivesse ao menos a sutileza delicada das petúnias. Não seria no terreno do amor que brotaria a nova petúnia.
As três amigas se olhavam pensativas. Se estava fora de cogitação ensinar uma mulher a ser carpideira, talvez fosse possível ensinar uma carpideira a ser mulher. A desabrochar como uma petúnia. Uma semente de esperança parecia querer germinar na Casa das Petúnias. A tarefa, claro estava, não seria livre de esforços. Seria primeiro preciso escolher as melhores mudas. Dentre as mais tenras e vistosas. Cuidar das podas necessárias, retirar alguns ramos não desejados, as petálas mais gastas, tornando as mais belas mais aparentes. Cercá-la de cuidado, prover as guias e orientar seu desenvolvimento até que se tornasse uma petúnia completa, dona do mais doce dos néctares, pronta para ser colhida. E que ainda assim mantivesse o poder de verter o orvalho das carpideiras quando se fizesse necessário. Uma flor que alegrasse a vida e que velasse a morte de Noroé.
Rememoraram as melhores carpideiras que conheciam. As mais constantes concorrentes, até aquela dupla que havia ido à Noroé lhes fazer frente. Mas nenhuma parecia ter as cores de uma bela petúnia. A maioria já havia mesmo passado do período da colheita.
— Vocês lembram do falecido José Antunes, lá do parreiral? — Foi Hortênsia quem perguntou.
— O que tem ele?
— Não — Deise interrompeu, bruscamente — ela nunca aceitaria o convite.
— Quem? — Rosa com o olhar perdido em curiosidade, procurava a resposta nos olhares de Hortênsia e Deise. A despeito da pergunta, Deise continuou:
— Não é porque o marido morreu que agora ela vai aceitar um convite desses.
— Quem!? — Insistiu a rosa impaciente.
— A viúva Antunes, ora! — Explodiu Deise
— A viúva Antunes? Não, não... — Hortênsia argumentou tranquila.
O olhar surpreendido de Deise, voltando-se rapidamente para Hortênsia deixou Rosa ainda mais curiosa, mas agora ela apenas esperava uma revelação.
— Não, não a viúva Antunes. A filha dela. Lembra como ela chorava no enterro do pai? Tinha futuro a mocinha, uma carpideira quase nata.
Deise e Rosa permaneceram olhando Hortênsia. Ela continuou:
— E é bem ajeitada a moça. Novinha, viçosa, carinha de anjo. Se não tivesse a mãe que tem, quem sabe já tinha desabrochado ou enamorado algum rapazote lá das bandas do parreiral. E, se pra isso ela não tem experiência, a gente pode ensinar a moça aqui na Casa. Com um período com as Petúnias não tem quem não saia mais vistosa.
Deise e Rosa trocaram olhares. Agora era Hortênsia quem esperava pela decisão das outras petúnias.
— Mas... mas... será? A viúva Antunes é que não vai gostar da ideia.
— Ora, Deise. Mas não custa tentar. Afinal, de certa forma, a menina seria também uma carpideira. De certo modo, ao menos. Vai que a mãe acaba por concordar, com um pouco de
insistência. Você conhece ela melhor que eu, mas se não for a filha do finado Antunes, quem mais a gente tem na lista?
O silêncio que envolveu a troca de olhares deixava claro que as opções eram magras para as três petúnias. E elas não sabiam quanto tempo ainda teriam para procurar a candidata ideal para substituir Deise que, mesmo sem ainda aparentar, sabia-se que murchava dia a dia. Ficou decidido. No dia seguinte a Casa das Petúnias ficaria fechada. Iriam as três até o parreiral falar com a viúva Antunes na esperança de convencê-la a deixar a filha se tornar uma carpideira e — bem — uma petúnia.
A manhã acordou com o cheiro de crisântemo soprado por um vento vindo do campo. O sol estava agradável, iluminando o céu espargido de nuvens de onde escapava um azul alviçareiro. Rosa foi a última das petúnias a sair de casa. Fechou o portãozinho branco com a trava delicada e, junto com as amigas que aguardavam na entrada da casa, puseram-se a caminho do parreiral.
O moeirão que prendia a porteira estava adornado por flores silvestres que nasceram naturalmente ao redor da tora bruta. A porteira cedeu facilmente, sem rangido. Lá embaixo, no fim da estradinha bem capinada, estava a velha casa do finado Zé Antunes. A viúva Antunes estava abaixada de costas para as visitantes, cuidando de um canteiro de margaridas, e não percebeu a presença das petúnias até que elas já estivessem à soleira da casa.
— Bom dia, Verônica.
A viúva Antunes parou por um momento os seus afazeres e, lentamente, levantou-se e virou-se para as três mulheres recém-chegadas.
— Vejo que continua cuidando das margaridas. — continuou Deise, deixando brotar um discreto sorriso nos lábios.
Limpando as mãos no tecido cru do vestido, a viúva Antunes respondeu:
— Já faz um bom tempo que não vejo vocês por essas bandas. Desde que o meu finado Zé se foi, que deus o tenha.
— Faz sim algum tempo. Mas desta vez a visita não é a trabalho, não.
— E o que vocês querem aqui, se ninguém tá pela hora morte?
— Alguém sempre está, Verônica. Será que a gente pode entrar pra um dedo de prosa?
A viúva Antunes olhava Deise tentando colher algo de seus olhos. Olhou as outras duas mulheres atrás dela. Com lábios torcidos e um suspiro, olhando um tanto de lado, cedeu:
— Bom, que não se diga que Verônica Antunes faltou com os modos.
Deu as costas às três petúnias sem mais palavras, entrando em casa e deixando a porta aberta atrás de si. As três visitantes se olharam, um tanto na dúvida. Deise deu de ombros e começou a subir os degraus da porta de entrada, logo depois seguida por Rosa e Hortênsia.
A sala de estar estava escura, com as janelas de folhas duplas fechadas. A madeira nodosa da parede dava um ar abafado ao ambiente decorado por uma imagem da Virgem na parede e por uma manta de crochê que cobria um sofá velho e de estofado desgastado. A viúva estava sentada em uma cadeira de palha com uma almofada no colo. As visitas sentaram-se no sofá, com Deise espremida entre as duas amigas.
— Então, o que é que vocês querem?
— As coisas não andam bem na Casa das Petúnias, Senhora Antunes. — Hortênsia tomou a iniciativa.
— E o que eu tenho com aquele lugar!? — A viúva interrompeu de forma quase hostil.
O barulho das xícaras despertou as interlocutoras. Uma moça jovem, de olhos castanhos vivos, vestido listrado um pouco abaixo dos joelhos e cabelo amarrado em um coque chegava com uma bandeja com xícaras e um bule fumegante.
— Bom dia... Licença? Eu ouvi que tinha visita e passei um café. Vou deixar aqui e já deixo vocês à vontade.
O aroma do café recém passado amenizou o rompante da dona da casa. As três mulheres olharam a moça com interesse. De fato Hortênsia tinha razão. A menina tinha, aparentemente, os atributos para uma petúnia.
— Pode ir, Dália. Pode deixar que eu sirvo.
A menina fez uma mesura e se retirou. Logo, da cozinha, começou o som ritmado das louças na água. Enquanto a viúva servia-se de café, Deise retomou o assunto:
— Estou doente, Verônica.
Após o relato de Deise, a viúva Antunes pareceu arrefecer em sua indisposição. Olhava a petúnia com um ar distante, talvez tentado entender algo que as petúnias não saberiam dizer o quê. Mirou o tapetinho entrelaçado no chão da sala, tornou a olhar para Deise.
— Por que você está me contando isso? Quero dizer... o que eu posso fazer? Eu não sou médica!
— Quanto a isso não há nada a ser feito — respondeu Deise. As duas amigas seguraram em suas mãos, tentando reconfortar o que não podia ser remediado.
— Mas talvez haja uma última coisa que você possa fazer... por mim.
Na cozinha, Dália terminara de lavar a louça. Estava agora secando as peças para guardá-las no armário. O calor do fogão à lenha ainda mantinha-se aconchegante. Os ouvidos atentos, na esperança de aplacar a curiosidade sobre a conversa que se passava na sala. Ela já tinha visto aquelas três mulheres e lembrava das três petúnias no enterro de seu pai. Mas o que elas poderiam querer com a sua mãe? A conversa mal chegava à cozinha e mesmo que ela evitasse fazer muitos ruídos, pouco conseguia ouvir do que se falava na sala escura. Um grito de indignação rompeu o silêncio, sobressaltando Dália, que quase deixou cair uma baixela.
— O que!? Como vocês tem coragem de me perguntar uma coisa dessas!?
A voz da viúva se elevada a ponto de ficar alta mesmo na cozinha. Um acesso de tosse a acometeu enquanto ela intercalava impropérios contra as visitantes. Dália apressou-se, pé ante pé, até o corredor que dava à sala. Por trás da parede fina de madeira, pôde ouvir a mãe praguejando e insultando as três petúnias, com acessos de tosse e uma raiva que há muito Dália não ouvia na voz tão austera da mãe. Como elas ousavam sugerir que a filha dela, tão honrada pudesse se tornar uma petúnia? Uma vagabunda! "Mas Noroé precisa de mais uma carpideira", ouviu uma das visitantes dizer, "a senhora mesmo já foi uma carpideira um dia, não foi?" ouviu outra falar. "Alguém precisa ocupar o meu lugar, Verônica. Em breve, eu é que vou estar deitada e daí quem é que vai chorar pela cidade?". Os impropérios da mãe cresciam de volume, só interrompidos pela tosse insistente. "Fora! Fora daqui!" A mãe gritava com as mulheres. Dália achou que era hora de intervir. Entrou na sala às pressa, amparando a mãe que se levantava da cadeira, a almofada caindo ao chão. As três visitantes já de pé. A filha tentando apaziguar a mãe ou mesmo tempo que ia abrindo a porta para deixar as visitas saírem. Ao passar pela porta Deise teve os olhos capturados pelos de Dália. Não durou mais do que alguns segundos, no entanto, e logo as três petúnias estavam subindo o caminho novamente até a porteira do parreiral. Dália deitou a mãe no sofá e trouxe-lhe um copo da água com açúcar.
— Agora, mamãe, descanse. Eu vou terminar as coisas na cozinha e recolher a roupa. Não demoro. Mas a senhora precisa descansar.
Lançou um último olhar à porta e saiu em direção à cozinha. A porta dos fundos estava aberta e ela saiu correndo pelo descampado atrás da casa. Passou pelo varal vazio e, levantando o vestido, correu em direção à cerca que dava para a estrada de terra mais acima. Chegou à cerca ofegante, uns fios de cabelos dependurados do coque colavam-se ao seu pescoço delicado, a boca entreaberta arfando. Chegou a tempo de ver as três petúnias vindo pela estrada. Vendo a menina pendurada na cerca, Deise já se antecipou em desculpas.
— Desculpe, Dália. Eu não sabia que sua mãe reagiria dessa forma. Eu não queria ver Verônica tão mal.
Dália só respondeu após recuperar o fôlego:
— Eu que me desculpo. Não pude deixar de ouvir a conversa de vocês.
Rosa e Hortênsia se olharam em surpresa. A menina continuou como se não tivesse percebido qualquer reação.
— Não é só você que está doente, Deise. Mamãe também já não tem mais muito tempo. Já não é recente, mas ela nunca me ouviu e se recusava a ir ao médico. Mesmo quando ele veio até nossa casa, a meu pedido, ela não quis recebê-lo. Ela dizia que quando fosse a hora dela, Deus a chamaria e não tinha nada que ninguém pudesse fazer. A única coisa que ela fez foi acender umas velas no altar e pedir a bênção do padre. Disse que se Deus quisesse, ia ouvir e curar ela. Só quando ela ficou muito mal foi que se convenceu a receber o doutor. Na verdade, acho que ela não conseguiu foi botar ele pra fora, tão fraca que estava. O doutor disse que se tivesse tratado antes, talvez tivesse jeito de curar mamãe. Mas que agora, não tinha mais o que ser feito. Ele deu a ela mais um ano, no máximo.
A menina terminou o relato já quase com a voz embargada, os olhos vivos marejados. Deise não disse nada. Apenas estendeu os braços por sobre a cerca, envolvendo a garota com um abraço separado pelos arames e moeirões. A menina se desvencilhou, passou por entre os arames da cerca, respirou fundo e disse:
— Mamãe logo vai precisar das três petúnias. E como você mesmo disse, você não vai poder fazer isso. Alguém vai precisar ocupar o seu lugar para carpir no enterro de mamãe. E ela merece um enterro de verdade. Ela precisa das três petúnias.
— Sinto muito, Dália. — Deise finalmente disse, enquanto Hortênsia, atrás dela apertava a mão de Rosa. Eu gostaria muito de poder ajudar, mas receio que eu vou precisar de uma carpideira muito antes de sua mãe. E não há ninguém que possa ocupar o meu lugar na Casa das Petúnias. Bem, ao menos não completamente. E se você ouviu a nossa conversa, sabe o que nós viemos pedir a sua mãe. E sabe também o que ela pensa disso. Ser uma petúnia é muito mais do que ser uma carpideira.
— Eu ouvi sim a conversa e sei o que pensa minha mãe. Só que vocês não sabem o que penso eu. Minha mãe precisa das três petúnias. E se é preciso uma nova terceira petúnia e se vocês acham que eu posso ser essa pessoa, eu quero que vocês me levem pra Casa das Petúnias e quero que minha mãe tenha o enterro que ela merece.
— Mas e sua mãe?
— Minha mãe não sai de casa desde que meu pai morreu. Os vizinhos já se distanciaram. Ela não sai mais nem pra ir à missa, até por causa da saúde. Não vai em mais em nenhum enterro. Eu posso ir escondida pra Casa das Petúnias, até eu aprender tudo o que for preciso. Minha mãe não vai nem saber.
— E você sabe o que você está sugerindo?
— Sei sim, Deise. Eu sou filha de minha mãe mas não sou a minha mãe. E sei bem o que estou sugerindo.
Rosa e Hortênsia se animaram atrás da amiga, mas Deise deixou a decisão com a menina:
— Se você não mudar de ideia, pode ir à Casa das Petúnias na próxima semana. E nem um dia antes. Entre pelos fundos.
Dália não disse uma palavra, mas dardejou Deise com os olhos castanhos determinados. Abriu um sorriso às três petúnias, passou novamente pelo vão da cerca e com o vestido alto desceu correndo pelo pasto em direção à casa. O azul que escapava por entre as nuvens acompanhou as três petúnias sorridentes à caminho de casa. Uma esperança parecia querer germinar no jardim das petúnias.
Na segunda-feira seguinte, ninguém percebeu a figura que se esgueirou por trás da Casa das Petúnias. Vestido escuro, chapéu de palha de abas largas penduradas para baixo, caminhar ágil sorrateiro. As batidas foram leves à porta dos fundos. Mas o tempo de espera foi mínimo. Logo a porta se abriu para receber a recém chegada que, de pronto, desapareceu no interior da construção. Rosa recebeu a visitante com um sorriso empolgado no rosto. Não se conteve e abraçou Dália assim que ela entrou. A menina sorriu, meio sem jeito ainda. Tirou o chapéu e deixou sobre uma cadeira junto com a bolsa que carregava. Quando finalmente entrou na sala com decoração colorida, Deise e Hortênsia estavam sentadas no sofá espaçoso. Na mesa de centro, quatro xícaras de chá e um bule.
A cena se repetiu com frequência nos meses seguintes. Pela porta dos fundos, Dália entrava, como uma semente adentrando à terra fértil. Quando saía era como se uma pétala a mais tivesse desabrochado. As primeiras semanas logo demonstraram a naturalidade e a inclinação da moça na arte de chorar os mortos. A menina era uma carpideira nata. No nível das melhores. Ao nível, mesmo, das Três Petúnias. O período seguinte, portanto, foi dedicado ao desabrochar de Dália como mulher. Como Petúnia, acima de tudo. Era como se Deise, Rosa e Hortênsia, uma a uma, abrissem suas pétalas delicadas, com atenção, sem pressa, num desabrochar lento mas constante. Pétala a pétala Dália ia desabrochando, tudo corria bem, as quatro se tornavam cada vez mais íntimas, mais amigas, mais felizes. Até o dia em que a razão de tudo aquilo se fez lembrar.
A verdade escarrada em vermelho sobre a fronha branca. Deise tremia pálida como pétala alva ao vento. O médico foi chamado para confirmar. Dentro em breve, Deise começaria a murchar de fato. Deise permitiu que a comoção durasse dois dias apenas. Era preciso acelerar o treinamento de Dália se Deise quisesse, ela mesma, receber as honrarias das Três Petúnias e deixar o seu legado à Casa. Muito discretamente, foram introduzidos alguns clientes selecionados à Dália. Jovens amenos e agradáveis das cidades próximas. Demorou até que se ouvisse em Noroé um ou outro boato sobre uma possível nova Petúnia. À boca pequena a novidade acabaria por fim se espalhando, ainda que não houvesse nenhuma ideia de quem seria a nova integrante. Dália atendia apenas os clientes de outras cidades. E não carpiria no enterro de ninguém até que o tivesse feito no de Deise. Era uma exigência de sua tutora.
Não demorou, de fato, para que Deise começasse a fenecer. A notícia, dessa vez, se espalhou rápida pela cidade. O médico foi chamado novamente. Era preciso amenizar a dor da paciente. "Não demorará muito agora", ele havia dito à Hortênsia. Uma semana provavelmente, duas no máximo. Foi a própria Hortênsia que deu a notícia à Deise. Rosa chorava, desconsolada. Naquele dia, a Casa não recebeu nenhum cliente. Naquela mesma tarde, as quatro se reuniram no quarto de Deise, ao redor da cama. Ali foi finalmente proclamado: Dália estava pronta. Tornara-se uma Petúnia. O legado da casa das Petúnias estava salvo. E os momentos finais de Deise com as honrarias garantidas. Seria o maior e mais bem velado enterro de Noroé. Digno de uma de suas grandes carpideiras.
Dois dias depois o doutor deixou o quarto de Deise pela última vez. A última pétala havia caído. A petúnia estava morta. As lágrimas verteram em profusão na Casa das Petúnias. Noroé ficara menos perfumada. O aroma agradável da petúnia fora substituído pelo dos crisântemos.
Em casa, Dália tentava disfarçar a aflição, a tristeza e a angústia pela falta de notícias. Sabia que em breve chegaria o dia e que ela provavelmente não estaria ao lado de Deise. A mãe, mergulhada em seus afazeres e orações, não fez muito caso do silêncio da filha que, no mais, agia como sempre agira. Seus trabalhos em casa sempre em dia, sua ida diária à cidade para resolver alguma coisa ou comprar algo, seu retorno algum tempo depois. Mas a notícia não tardou a correr a cidade. Foi uma agente de saúde que contou à viúva a novidade. Dália, do outro da parede, ouviu a conversa com um aperto no coração. Na cozinha, entre as louças, camuflou o choro com o barulho da água corrente. Precisaria estar preparada para quando a visitante se fosse e a mãe viesse se lhe contar a novidade. Seria preciso disfarçar o pranto sem o correr da água. Quando de fato a mãe lhe contou a novidade, disse apenas: "pobrezinha" enquanto ocultava o sofrimento sob uma aparência apiedada mas austera. Naquela noite, com a desculpa de buscar mais informações, foi à cidade e entrou pelos fundos mais uma vez na Casa das Petúnias. A mãe disse que era uma tolice de menina curiosa. "Mas todo mundo deve estar falando nisso, mamãe. Deve ser um enterro bem movimentado". "Não por mim," respondeu a mãe dando de ombros. A confirmação tranquilizou Dália, que partiu para a cidade fingindo a curiosidade das velhas de Noroé.
Naquela noite, em Noroé, muitos maridos dormiriam no sofá. As primeiras velas só foram percebidas pelas petúnias quando Dália chegou e avisou as amigas. Rosa e Hortênsia olharam pela janela. Dezenas de velas acesas à frente da cerca branca. E alguns homens de rostos tristes, velhos e jovens, cabisbaixos de chapéu na mão. Poucos ficavam. Apenas os velhos que já nada deviam e os mais jovens que pouco se importavam. Os demais apenas plantavam uma vela e retornavam aos seus lares para as esposas carrancudas que certamente não gostariam de saber da homenagem. Uma ou outra mulher, apenas, compareceu. Uma talvez por ter se comovido pela vigília não programada, outra talvez com um certo prazer vingativo muito bem oculto. Os olhos das petúnias se encheram mais uma vez de lágrimas à visão das velas que iluminaram a Casa das Petúnias durante toda a noite. Dália retornou à sua casa e contou as novidades para a mãe, que mais uma vez se recusava a partilhar das conversações da cidade e se negava a compararecer no enterro. No entanto não proibiu a filha de ir, se fizesse questão, desde que voltasse logo em seguida.
Na manhã seguinte Dália entrou, ainda bem cedo, novamente pela porta dos fundos. Quando a porta da frente se abriu e as petúnias saíram, inclusive Dália, escoltando quatro homens em ternos negros que carregavam o caixão, uma pequena multidão de homens e mulheres aguardava para a tradicional procissão ao local do descanso final de Deise. Fosse ou não fosse uma petúnia, um enterro sempre era uma ocasião importante em Noroé.
O ataúde simples foi depositado sobre o carro de bois que se dirigiu para o cemitério seguido pelo cortejo silencioso de meia Noroé. Rosa e Hortênsia logo atrás do carro. Pouco mais atrás, Dália e os carregadores já seguidos de vários homens e mulheres cabisbaixos trocando olhares furtivos.
A viúva Antunes ouviu as batidas na porta com desconfiança. Sabia do que se tratava. Manteve-se por uns instantes em silêncio, esperando que a visita desistisse. Mas as batidas à porta se repetiram. Contrariada, abriu a porta para encontrar a agente de saúde que lhe atendia. "Hoje não é dia de consulta", disse já de início. Mas não era, obviamente, uma consulta. Naquele dia, todas as atenções estavam voltadas para o enterro da petúnia. De Deise. Mas a viúva já não participava da vida de Noroé. Mesmo quando o assunto era a morte. E, nesse enterro, não fazia questão alguma de ir. Dália já tinha ido. Se houvesse alguma novidade digna de se saber ela lhe contaria. Mas toda a cidade iria, dizia a agente. Além do mais, já está mais do que na hora de você sair um pouco de casa. Vai fazer bem. Ordens médicas, disse por fim. Já se arrependendo por antecipação, a viúva colocou seu traje de missa e acabou por ceder à mulher insistente à porta. Seguiram lado a lado sob uma sombrinha, deixando o parreiral a caminho da cidade.
No cemitério o padre aguardava solene o cortejo junto à cova recém-aberta. A procissão se acercou. Silêncio e olhares quando as petúnias se aproximaram do caixão. Entre as duas, Dália. Jovem, olhos brilhantes baixos cobertos por uma tela negra dependurada do chapéu pequeno. As lágrimas começaram a correr sem barulho. Silenciosas, rolavam pelas faces. Podia-se ouvir a respiração de todo o cortejo, outro barulho não havia. Uma lágrima se pendurou no queixo agudo de Rosa e aguardou ali. Do rosto de Hortênsia, outra agarrou-se pronta a se precipitar. Dos olhos vivos de Dália uma gorda e brilhante lágrima se desprendeu magistral, descendo com cuidado a face, como que evitando perder a forma, uma pérola de água, sal e saudade. Segurou-se no queixo delicado. Por um instante a respiração de todos pareceu sincronizada em uma única longa inspiração. E, como se combinado ou se donas de uma consciência em comum, as três lágrimas se desprenderam ao mesmo tempo. Explodiram como três coroas prateadas diminutas sobre a madeira lixada da arca onde Deise repousava. Eis que começaram os soluços. Intercalados, um puxando o outro em uma melodia triste, num grave e choroso gemido longo de Hortênsia, aveludado pelas lágrimas, dando base ao soar baixo e harmonioso de Rosa, quase melódico, entrecortado pelo pesaroso stacatto, entrecortado, pulsante, das lágrimas de Dália. As lamúrias orquestradas foram ganhando corpo num crescendo andante, contagiando os corações mais duros que se apiedavam e se derretiam. O próprio padre não pode segurar as lágrimas frente ao choro da Três Petúnias Carpideiras de Noroé.
A viúva Antunes acabava de chegar. Não podia divisar quase nada. Um círculo ao redor da cova mal deixava ver-se o padre. E no ar, um choro doído, melódico, envolvente. Um choro digno das Grandes Carpideiras. Mas havia uma nota diferente, mais cristalina, um tanto menos alongada mas mais vibrante. Faltava a nota de Deise, mas havia uma nova nota, tocante e vívida, que ela não reconhecia. Aproximou-se, vencida pela curiosidade, do círculo ao redor do caixão. Viu o ataúde no fundo da cova, coberto por petúnias coloridas atiradas lá dentro. Levantou os olhos e foi tomada de espanto quando viu a filha, compenetrada, entre as duas petúnias. Um trio de carpir vigoroso e, ela sabia, um trio que fatalmente faria mais do que carpir. Desconcertada, em silêncio, baixou os olhos novamente para o caixão e viu, através da janelinha de vidro na madeira, lá dentro, o rosto plácido de Deise com um sorriso no rosto. O mesmo sorriso que ela vira, anos atrás, quando havia ensinado a falecida a carpir.
Um comentário:
Quase um mês depois, segue outra atualização. Finalmente outro texto inédito. O tom mudou um pouco no decorrer da criação, fiquei um pouco da dúvida numa mudança de carga narrativa sobre qual seria o foco da história. Mesmo assim, aí está.
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