“Hoje eu explodi em uma bola de fogo. Foi magnífico.”
— Herr Voss, seu Dreidecker está pronto.
O jovem piloto fechou rapidamente o caderno de capa de couro, guardando o lápis e levantando a cabeça para olhar o abastecedor. Mas olhava além dos olhos claros do homem. Atrás dele, o Fokker Dreidecker brilhava prata no sol das cinco do sul da Bélgica.
Era setembro, havia uma estática no ar que passava ligeiro pelas asas do triplano. Em cada asa as cruzes maltadas se destacavam negras contra o céu que começava a trocar de cor. O vôo era calmo e Werner abriu o caderno de couro com uma das mãos. Mais admirava as letras que as lia, mantinha o olhar nos céus. Mesmo depois dos vôos de esquadrilha, deixava o Jasta 10 para manter seus vôos solo, fazendo a ronda. Gostava de pensar lá em cima. Deixava as coisas mais claras, justificava. Tinha apenas vinte anos e já perdera provavelmente mais amigos que o avô; que o pai certamente. Voava comandado pelo maior Ás da Luftstreitkräfte e, como todos os pilotos da Jasta 10, planava sempre sob a sombra do comandante Richtofen. Há alguns meses já conseguira permissão para voltar a voar sozinho em rondas agendadas. Há alguns meses escrevia no caderno de couro tudo o que pensava, lá em cima ou lá embaixo. Sonhava com o som do vento misturado ao som das balas. E quando olhava para baixo, em sonho, confundia a copa das árvores com as explosões das aeronaves abatidas. As copas não eram verdes, eram vermelhas cor do fogo. Cor do Barão.
Viu longe dois pontos contra o horizonte. Fechou o caderno com cuidado, colocou-o entre as pernas e aumentou de altitude. Era um vôo de reconhecimento britânico, mas quando deram por si, Voss já os tinha sob a mira. Um dos adversários não durou mais do que alguns segundos. Uma rajada certeira obrigou o piloto a buscar algum sítio qualquer para uma aterrissagem forçada. O segundo piloto tentou contornar pela esquerda, mas o Dreidecker alemão em uma manobra rápida se pôs novamente em uma altitude superior, expelindo balas das duas metralhadoras contra a fuselagem inimiga. O piloto britânico mergulhou seguido por Voss. Manobrava para evitar maiores avarias mas não pode escapar da chuva de balas que as duas Spandau despejavam. As duas aeronaves perdiam altitude rapidamente na caçada e não perceberam a aproximação de uma esquadrilha inteira que patrulhava a área. A fumaça preta do avariado avião inglês deu a certeza a Voss de mais uma vitória, mas também alertou a esquadrilha inglesa.
Quando Voss percebeu as sete aeronaves bem acima de sua posição percebeu as inscrições B 56 na fuselagem da força de elite da armada inglesa. Fechou os olhos por um instante, sentiu o vento zumbir forte pelas asas do triplano. Lembrou dos amigos, dos inimigos, dos quase cinqüenta abates. Circulou abaixo da esquadrilha que se aproximava, garantindo para que as cores da Jasta 10 fossem notadas. Abriu o caderno de couro na página marcada e leu as últimas frases do último texto que escrevera. “Hoje eu explodi em uma bola de fogo. Foi magnífico.”
Sorriu com graça, fechou o caderno, respirou fundo como quem fosse mergulhar, mas ao contrário, puxou o manche com violência. O triplano empinou como um cavalo xucro e começou a escalar os céus velozmente. A esquadrilha se dividiu, tentando cercar a nave alemã. Voss continuou subindo em uma espiral ascendente, as duas metralhadoras despejando balas que se alojavam nos aviões ingleses. Um, dois, três, quatro naves alvejadas no movimento ascendente, uma delas sangrando uma fumaça preta de óleo queimado. Outra já fora de combate. Do alto sobrevoou a outra metade da esquadrilha. Mais duas rajadas, mais um inimigo atingido. Não se preocupava em derrubar ou inutilizar todos os aviões. Queria apenas marcar cada um deles, pra que quando pousassem pudessem contar a história do piloto que marcara toda uma esquadrilha. Todo o esquadrão B.
Despertou do devaneio com o som das balas contra a própria fuselagem. Antes de despistar o perseguidor, conseguiu ainda disparar mais uma rajada na asa do inimigo a sua frente. Procurou no céu que começava a escurecer a última aeronave. Avistou-a numa altitude um pouco acima da sua, e começou novamente os círculos ascendentes em direção ao único avião que escapara de suas balas. As metralhadoras alemãs disparavam velozes. Não precisavam economizar munição. O inglês à frente sacudia seu avião de um lado para o outro, tentando evitar os projéteis. Todo o restante do esquadrão B estava se alinhando para encaudar Voss. As metralhadoras inglesas tentando um tiro seguro. Até que Voss viu, no centro de metal da mira de suas Spandau, a marca da armada inglesa, em forma de alvo. Uma rajada certeira alojou os projéteis no círculo vermelho na fuselagem inimiga. Relaxou os músculos da face, os ombros, esboçou um leve sorriso de contentamento enquanto continuava a espiral ascendente. Lá no alto, junto às primeiras estrelas, viu, abaixo, as copas das árvores. E entre ele e elas, todo o esquadrão B avariado. Fechou os olhos, agarrou o caderno, ouviu o motor trabalhar barulhento naquela altitude.
Quando o Dreidecker atingiu o cume de sua trajetória, desligou o motor. Por alguns segundos não ouviu nada. Nem o vento soprava contra o avião parado no ar. Podia quase ouvir as estrelas. Ou as copas das árvores. O triplano apontou, silencioso, o nariz para baixo e o vento começou a uivar sonoro, veloz, novamente. Ouviu o zumbir do outros aviões ao passar por eles num mergulho cego. Sentiu o avião vibrar com rajadas inimigas.
Visto de cima, pareceu o nascer de uma nova árvore, vermelha, em meio às copas verdes. Naquele dia, Werner Voss explodiu em uma bola de fogo. Foi magnífico.
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009
Pastel
Passava pouco das sete horas. Uma chuva muito fina praticamente pairava no ar. Apenas um spray, relutante em tocar a cidade, agarrava-se nas luzes brancas derramadas pelos postes verdes.
Dobrou a esquina com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco de moletom, a cabeça baixa escondendo-se da umidade ou de algo mais que pairasse no ar. Desceu a Floriano Peixoto contando as manchas de chicletes grudados na calçada. Entrou na galeria de azulejos azul-anos-setenta, deixando para trás o ar molhado e os ecos de um trânsito lento e imbecil. Ouviu as borrachas dos tênis molhados coaxarem pelo velho corredor, até divisar a luz âmbar que escapava da porta em arco, junto com as notas de um samba gravado há muito.
Era cedo, não havia muita gente. Na área das mesas, só duas ocupadas: uma, colada à parede, por este homem que rabiscava com uma caneta Bic em um caderno amarrotado. Outra, do outro lado, por um casal de trinta e poucos, de mãos dadas, conversando abaixo do samba choroso que saía de uma caixa de som em algum lugar. Com uma careta mal disfarçada, dirigiu-se à outra ala do pequeno botequim. Esta, tinha o balcão ornamentado por fregueses costumazes e long necks de vidro verde pela metade.
Ao se aproximar, podia ouvir o resmungar randômico dos homens ao balcão. Baixo, pra não atrapalhar a viola chorosa, buscando um alvo qualquer sobre o que praguejar. O patrão que não entendia do negócio, que parou no tempo, que ficara ultrapassado; o trânsito lerdo e estúpido de uma cidade de três ruas que não escoava sua pequenez; a chuva que insistia em cair lá fora quando não eram meses de calor infernal. Sentou-se num dos bancos, ao que os outros o olharam, só para tornarem a fixar-se nas próprias bebidas. Alguém que visse a cena de fora, poderia apontar certa animosidade na acolhida. Mas visto de perto, de dentro, era possível sentir o consentimento mudo, uma compreensão silente e até uma tênue, muito tênue — quase como as gotas de chuva suspensas lá fora —sensação de boas vindas.
Deixou o corpo arquear para frente, olhou sobre o balcão as garrafas verdes, e pediu uma ao garçom. Não que gostasse particularmente da bebida, mas não parecia certo destoar daquele quadro verde-âmbar, de matiz tristonho, tabaco e silêncio. O samba entoava agora a voz de um negro lamurioso e, à medida que o balcão ia se enchendo, o resmungar foi dando lugar ao silêncio. Logo o espaço ficou apertado e os cotovelos começaram a se tocar. Sentiu-se tomar por um conforto de sofá velho, dividindo silêncios e fumaça e goles verde-âmbar. Dividindo algo mais, muito sutil para ser precisado, mas o suficiente para ser algo. E isso era o suficiente.
O resmungar cedeu completamente no balcão silente. Observando com cuidado, era possível notar um leve embalo, muito tímido, mas ritmado na melodia do samba lento. Primeiro para a direita, depois para a esquerda, já ombro a ombro, casacos se tocando, silêncios se tocando em histórias não pintadas e angústias desbotadas. Algo mais, despercebido, pulverizado no ar, misturado ao cheiro do fumo queimado.
Ficou ali uma, duas, três horas. Bebeu a última garrafa ainda mais lentamente que as outras. Tirou algumas notas da carteira, colocou no balcão, com a garrafa verde por cima. Levantou-se do banco. O som do roçar dos casacos pareceu despertar os homens do balcão, como se um vento frio acossasse o ombro desprotegido. O embalar cessou. O negro triste cantava sozinho. Os outros o olharam com uma pincelada de resignação e, mudos tornaram a olhar o balcão. Com um suspiro, deu as costas, meteu as mãos nos bolsos e foi deixando a luz amarelada, as garrafas esverdeadas, ouvindo às costas o resmungar baixinho querendo recomeçar. Como acontecia todos os dias.
Percorreu o corredor azul sentindo uma falta de cada lado do corpo. Sentiu os ombros frios ao chegar à rua. E aquela estática de coisa suspensa no ar. O sinal piscou amarelo na noite de luzes brancas, postes verdes e céu escuro. Baixou a cabeça e tornou a percorrer a cidade cinza a caminho de casa.
Dobrou a esquina com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco de moletom, a cabeça baixa escondendo-se da umidade ou de algo mais que pairasse no ar. Desceu a Floriano Peixoto contando as manchas de chicletes grudados na calçada. Entrou na galeria de azulejos azul-anos-setenta, deixando para trás o ar molhado e os ecos de um trânsito lento e imbecil. Ouviu as borrachas dos tênis molhados coaxarem pelo velho corredor, até divisar a luz âmbar que escapava da porta em arco, junto com as notas de um samba gravado há muito.
Era cedo, não havia muita gente. Na área das mesas, só duas ocupadas: uma, colada à parede, por este homem que rabiscava com uma caneta Bic em um caderno amarrotado. Outra, do outro lado, por um casal de trinta e poucos, de mãos dadas, conversando abaixo do samba choroso que saía de uma caixa de som em algum lugar. Com uma careta mal disfarçada, dirigiu-se à outra ala do pequeno botequim. Esta, tinha o balcão ornamentado por fregueses costumazes e long necks de vidro verde pela metade.
Ao se aproximar, podia ouvir o resmungar randômico dos homens ao balcão. Baixo, pra não atrapalhar a viola chorosa, buscando um alvo qualquer sobre o que praguejar. O patrão que não entendia do negócio, que parou no tempo, que ficara ultrapassado; o trânsito lerdo e estúpido de uma cidade de três ruas que não escoava sua pequenez; a chuva que insistia em cair lá fora quando não eram meses de calor infernal. Sentou-se num dos bancos, ao que os outros o olharam, só para tornarem a fixar-se nas próprias bebidas. Alguém que visse a cena de fora, poderia apontar certa animosidade na acolhida. Mas visto de perto, de dentro, era possível sentir o consentimento mudo, uma compreensão silente e até uma tênue, muito tênue — quase como as gotas de chuva suspensas lá fora —sensação de boas vindas.
Deixou o corpo arquear para frente, olhou sobre o balcão as garrafas verdes, e pediu uma ao garçom. Não que gostasse particularmente da bebida, mas não parecia certo destoar daquele quadro verde-âmbar, de matiz tristonho, tabaco e silêncio. O samba entoava agora a voz de um negro lamurioso e, à medida que o balcão ia se enchendo, o resmungar foi dando lugar ao silêncio. Logo o espaço ficou apertado e os cotovelos começaram a se tocar. Sentiu-se tomar por um conforto de sofá velho, dividindo silêncios e fumaça e goles verde-âmbar. Dividindo algo mais, muito sutil para ser precisado, mas o suficiente para ser algo. E isso era o suficiente.
O resmungar cedeu completamente no balcão silente. Observando com cuidado, era possível notar um leve embalo, muito tímido, mas ritmado na melodia do samba lento. Primeiro para a direita, depois para a esquerda, já ombro a ombro, casacos se tocando, silêncios se tocando em histórias não pintadas e angústias desbotadas. Algo mais, despercebido, pulverizado no ar, misturado ao cheiro do fumo queimado.
Ficou ali uma, duas, três horas. Bebeu a última garrafa ainda mais lentamente que as outras. Tirou algumas notas da carteira, colocou no balcão, com a garrafa verde por cima. Levantou-se do banco. O som do roçar dos casacos pareceu despertar os homens do balcão, como se um vento frio acossasse o ombro desprotegido. O embalar cessou. O negro triste cantava sozinho. Os outros o olharam com uma pincelada de resignação e, mudos tornaram a olhar o balcão. Com um suspiro, deu as costas, meteu as mãos nos bolsos e foi deixando a luz amarelada, as garrafas esverdeadas, ouvindo às costas o resmungar baixinho querendo recomeçar. Como acontecia todos os dias.
Percorreu o corredor azul sentindo uma falta de cada lado do corpo. Sentiu os ombros frios ao chegar à rua. E aquela estática de coisa suspensa no ar. O sinal piscou amarelo na noite de luzes brancas, postes verdes e céu escuro. Baixou a cabeça e tornou a percorrer a cidade cinza a caminho de casa.
Marcadores:
Literatura - Prosa,
Rodrigo Oliveira
quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009
Memórias do Ocaso - Um Largo, Sete Memórias, de Adolfo Boos Júnior
Memórias do Ocaso
Prelúdios do fim do século XIX em Um Largo, Sete Memórias, de Adolfo Boos Júnior.
Rodrigo Oliveira
Um Largo, Sete Memórias desfralda um panorama da Desterro na segunda metade do século XIX. Inspirado por documentos históricos, que o autor faz questão de referenciar na bibliografia, a obra é uma construção fictícia que nos apresenta o ocaso de um estilo de vida, o fim de um tempo, com a iminente chegada da abolição da escravatura e suas conseqüências sobre a sociedade da Ilha de Santa Catarina. A mudança de um paradigma social que se estende dos senhores de engenho em suas fazendas até a burguesia citadina, descrito pelas memórias e histórias de sete personagens-narradores. A trama acompanha a compra de uma escrava por um abolicionista, com o intuito de libertá-la. A partir deste fato envolvem-se ainda o escravo amante da negra comprada, seus senhores e capataz, culminando no fim trágico com a derrocada de cada um dos personagens, assim como do próprio modo de vida de uma época que, conturbadamente, chegava ao fim.No entanto, a caracterização de Um Largo, Sete Memórias como um romance histórico é prematura. O autor lança mão do contexto histórico para dar suporte à narrativa. Usa de pesquisas em fontes não-ficcionais para construir o universo do romance, agregando à obra coesão e verossimilhança, ajustando-a ao tempo histórico e corroborando dados historiográficos. O leitor é, de fato, apresentado à história da escravidão em Santa Catarina vislumbrando as questões da negritude, do comércio e do tráfico negreiro, os percalços com as mudanças da sociedade escravocrata catarinense em fins do século XIX. Ainda assim, os méritos (e o foco narrativo e dramático) do romance estão nas questões pontuais de sete personagens que, mais do que o envolvimento no desfraldar da história, concentram-se nas pequenezas de suas vidas, em seus próprios embates e desventuras. Os personagens estão distantes dos grandes heróis ou vilões dos romances eminentemente históricos, suas ações não se voltam a eventos que marcaram época. Na verdade, suas memórias parecem mais fadadas ao esquecimento. Memórias que, mesmo no próprio romance, não recebem sequer o direito de portar um nome. Restam-lhe apenas números. Primeira memória, segunda memória, como tantas outras memórias anônimas que, sim, fazem parte da história, mas cujo foco se volta para si mesmas, para suas próprias histórias. Mais do que construir um relato histórico, Adolfo Boos Júnior desconstrói a história, entregando-a a sete narradores distintos. E entre a narrativa histórica e a narrativa ficcional, torna-se frágil uma definição de verdade. As verdades são construídas, e destruídas, pelos próprios narradores e pelo próprio leitor.
O primeiro contato com Um Largo, Sete Memórias causa estranhamento. O texto fragmentado é dividido pela visão — pelas memórias — de sete personagens envolvidos na trama, complementado por mais uma memória, cujo título da obra classifica como “coletiva, inquisitorial, contraditória e, muitas vezes, perturbadora”. Essa fragmentação da narrativa é um retrato da subversão da forma, constante em toda a obra, pelo uso de diversos artifícios literários.
A linha narrativa é fracionada pela alternação das memórias. Os narradores vão se substituindo, dando continuidade, com seus próprios pontos de vista, à história narrada, por vezes sobrepondo essas memórias umas sobre as outras, apresentando diferentes abordagens de eventos subseqüentes ou de um mesmo evento. Essa fragmentação, além de um recurso literário que distancia o texto poético da obra da linguagem prosaica cotidiana, mimetiza a fragmentação tanto do status quo da sociedade escravocrata da época, como a própria fragmentação e inconstância das vidas dos personagens-narradores.
Na busca por uma singularização do texto, a linearidade temporal também é quebrada com freqüência. Prefaciando toda a obra, é apresentada a primeira parte do último capítulo (dividido em dois). O leitor, desde então, descobre que os acontecimentos que se seguirão serão os responsáveis pelos eventos sanguinários e pelo trágico ou triste fim dos personagens. Esta primeira parte, no entanto, não revela o final da trama e é apresentada de forma difusa, criando o clima de suspense necessário para manter a atratividade do texto e o interesse do leitor. Este primeiro capítulo funciona, portanto, como uma grande prolepse de toda a obra, um flashforward parcial. A partir daí, a história é narrada como um grande flashback — ou, mais precisamente, uma seqüência de vários flashbacks, de cada um dos narradores intercalando-se — até encontrar-se novamente no capítulo que encerra a narrativa, nas tragédias já prenunciadas no capítulo um. O andamento dos capítulos também é impulsionado pelo uso constante de prolepses e flashbacks, forçando o leitor a avançar e retroceder constantemente no tempo narrado. Da mesma forma como o livro apresenta, já no início, o que irá se suceder em suas páginas (ainda que de forma incompleta), cada capítulo traz um breve resumo, em geral não mais que uma frase, do que irá se desenrolar nas páginas subseqüentes, também de forma muito generalista e superficial. O capítulo então é uma nova seqüência de flashbacks que desenvolverão a história. Esses pequenos prólogos, que iluminam de forma difusa a história que se principia a contar, apenas prenunciando os fatos, em geral malfadados, dos personagens, mais uma vez retratam o prelúdio do fim. O momento imediatamente anterior ao mergulho da escravocracia, como era conhecida até então, rumo ao fim. Refletindo o momento anterior à efetivação da Lei Áurea e o fim do estilo de vida de uma época. O fim do século XIX. Um fim sangrento e abrupto para escravos e fazendeiros, e lento, mas não menos conturbado, para a burguesia urbana, que padecia sob uma ordem social que não mais se sustentava e um novo tempo que a pressionava, “fazendo as contas de um tempo longo e breve demais, (...) a forma rápida e irreversível como a vida poderia se esvair de repente, uma década não representava nada, simplesmente era uma véspera, só, nada mais do que isso”, nas palavras do Artista Bittencourt, a Segunda Memória. A passagem, constante na página 188 do romance, ilustra as reflexões do citado personagem frente a morte de Terta. A ex-escrava, agora liberta, trabalhava na casa do sapateiro Bittencourt, e parecia sempre prenunciar acontecimentos e os pensamentos do patrão. A morte da ex-escrava era um presságio da morte da própria escravatura. E o que resta a um abolicionista quando não restam mais escravos? A noite caía tanto para escravocratas como para abolicionistas, e o que se punha no horizonte era a própria essência e a existência do século XIX.
A própria figura do autor, além do uso dos personagens-narradores, parece buscar a subversão da forma. Além do conteúdo da obra e da forma como a trama é apresentada com os artifícios citados, a própria escrita, atenta contra a norma literária tradicional. Os parágrafos subvertem a pontuação e a disposição dos diálogos, numa escrita que apresenta influências (ou ao menos semelhanças) saramaguianas, tanto na densidade do texto, quanto na forma como o mesmo é apresentado, com os diálogos inseridos diretamente no corpo do parágrafo, sem o uso de marcações de falas, como as aspas ou travessões. O formato aproxima o texto de uma linguagem que se assemelha ao fluxo de pensamento, lembrando alguém contando uma história, alguém lembrando, contando as suas memórias. Ao mesmo tempo, o texto se afasta da oralidade quando analisado o uso rebuscado da linhagem, criando um texto denso, opaco e, na visão das escolas textualistas, um texto eminentemente artístico.
As passagens ao futuro e ao passado destacam-se na obra de diferentes formas, não apenas no conteúdo narrativo, como já foi abordado, mas na própria construção do texto. Um pequeno resumo introdutório, antes do início da história, nomeia cada uma das sete memórias principais. Como o elenco de uma peça teatral. Esse pequeno guia é a referência do leitor para identificar a quem pertencem as memórias no decorrer da obra, já que, durante o romance, a cada troca de narrador este nos é apresentado apenas como “quarta memória”, “segunda memória”, “quinta memória” e não pelos seus nomes. Aos primeiros capítulos o leitor vê-se com freqüência buscando este guia para identificar quem será o narrador da memória que irá ser contada a seguir. O leitor é obrigado a manipular o livro, passear por suas páginas, avançar e retroceder pela obra, fisicamente, da mesma maneira que o faz acompanhando a narrativa, que avança e retrocede no tempo da história narrada. Após os primeiros capítulos, o leitor assimila, seja pela conferência constante ao guia introdutório ou pelo conteúdo e estilo da narração, quem é o narrador de cada memória. Essa identificação das histórias, estilos e personalidades de cada narrador, associada à identificação de suas “alcunhas” (primeira memória, segunda memória, etc), torna o ritmo da leitura mais rápido no decorrer da obra, conduzindo o leitor ao final tragicamente prenunciado no primeiro capítulo. Esse acelerar na leitura coincide com o acelerar dos fatos que, se aproximando do clímax, tornam-se mais dinâmicos e intensos.
As memórias, em decorrência dos diferentes narradores, se apresentam cada qual com uma maneira de contar a história, com seu estilo. Aos poucos o leitor começa a conhecer os narradores e identificar a peculiaridade de sua narrativa. Uns mais intimistas, outros mais ousados, alguns sempre pesarosos e angustiados, outros soberbos e confiantes. No entanto, em momentos no decorrer da história, o leitor tem rápidos vislumbres de algo mais no texto, um elemento estranho à narrativa deixa-se transparecer por trás dos narradores. Ao leitor atento é possível ver a figura do autor, atrás da do narrador. Como um espectador que tem a atenção chamada aos cordões da marionete, denunciando seu manipulador, lembrando que o personagem é, apesar de tudo, um boneco de madeira. Ainda que as memórias sejam por eles narradas, percebe-se no uso da linguagem certa unidade que não condiz com a heterogeneidade dos narradores. Mesmo as personagens mais simples apresentam um domínio vocabular e de raciocínio em suas memórias que destoa de sua pouco privilegiada condição sociocultural. O leitor mais atento é, nesses momentos, “despertado” do romance. A quebra da catarse lembra que uma história está sendo contada, que um livro está sendo lido. Deslize do autor? Recurso necessário para atingir uma harmonia e identidade de linguagem em toda a obra? Seria a linguagem da memória naturalmente mais rebuscada que a da fala, permitindo que as lembranças de Cida e Bartolomeu, dois escravos, nos chegassem com a mesma eloqüência do abolicionista Bittencourt ou de Dona Gaudência? O fato é que mesmo tornando a leitura mais aprazível (aqui uma opinião irremediavelmente pessoal) o artifício levanta essas questões e por vezes retira o leitor de sua catarse.
Referências
BOOS Júnior, Adolfo. Um Largo, Sete Memórias (e mais uma, coletiva, inquisitorial, contraditória e, muitas vezes, perturbadora). Florianópolis. Editora da UFSC. 1997.
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009
Homenagem
Chega a dama
de pincel na mão.
Quadro estranho,
nunca viu tal formão.
De arte, não dá bandeira.
— Não dá, Bandeira!
Não dá.
Arte?
Articulação.
Arte?
Manha.
Chega a dama toda prosa
É ela a dama do verso?
É ela dama diversa.
Atuar, atua; bem se diga.
Só não no palco, que prefere os bastidores.
Apaga-se a ribalta,
desafina a canção,
ao ver a dama de pincel na mão.
Eis a dama acenando um papel.
Há Letras lá; mas só lá, pois então!
— Abana mais forte, pra espantar a poeira!
Muito tempo parado, acumulou pó da prateleira.
Pintou assim, meio do nada.
Como uma pincelada mal feita,
como obra rasurada.
— Basta, poeta. Já não há o que fazer.
— Muito o há, mas será que vai acontecer?
Arte?
Artimanha.
Arte?
Articulação.
Sobrou a esperança
do erro,
de não repetir-se o refrão.
Espero a dama
Calar-me então.
Terá seu ato diferente bordão?
de pincel na mão.
Quadro estranho,
nunca viu tal formão.
De arte, não dá bandeira.
— Não dá, Bandeira!
Não dá.
Arte?
Articulação.
Arte?
Manha.
Chega a dama toda prosa
É ela a dama do verso?
É ela dama diversa.
Atuar, atua; bem se diga.
Só não no palco, que prefere os bastidores.
Apaga-se a ribalta,
desafina a canção,
ao ver a dama de pincel na mão.
Eis a dama acenando um papel.
Há Letras lá; mas só lá, pois então!
— Abana mais forte, pra espantar a poeira!
Muito tempo parado, acumulou pó da prateleira.
Pintou assim, meio do nada.
Como uma pincelada mal feita,
como obra rasurada.
— Basta, poeta. Já não há o que fazer.
— Muito o há, mas será que vai acontecer?
Arte?
Artimanha.
Arte?
Articulação.
Sobrou a esperança
do erro,
de não repetir-se o refrão.
Espero a dama
Calar-me então.
Terá seu ato diferente bordão?
Marcadores:
Literatura - Verso,
Poema,
Rodrigo Oliveira
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009
Casório
O verão sempre foi quente naquela cidadezinha. Enfiada num buraco cercado de montanhas, vento também não havia para aliviar o meu calor. Suava às bicas, tinha os cabelos grudados na testa por baixo do chapéu claro e o suor me corria salgado pelos bigodes. Um calor dos diabos, como só fazia lá. E nós ali, esperando do lado de fora da igreja. Deus que me perdoe tamanha falta de respeito, mas eu juro por todos os meus santos que me deu uma vontade braba de aplacar a sede na pira de água benta; fresquinha, abençoada que nem se fora do rio Jordão. Sabe lá o Senhor o esforço que fiz pra me conter. Mas era o grande dia e padrinho que é padrinho não ia se deixar abater pelo calor. Mesmo que aquela gota maldita insistisse em continuar escorregando pelas minhas costas.
Acordaste com os olhos ardendo pela luz que entreva pelas cortinas abertas. O estômago ainda embrulhado dos gin tônicas da noite anterior. E das cervejas. E também das doses de tequila. Na boca o gosto do sal e de algo entre sebo e cabo de guarda-chuva, ainda que nunca tenhas provado da iguaria. O quarto cheirava a anteontem, uma mistura de cinzeiro, bebida e suor. Tinhas suado a noite toda e o sol da manhã já te cozinhara ao ponto de te acordar. Por que o maldito verão era sempre tão quente? Descolaste a cabeça da fronha molhada e o movimento trouxe uma breve náusea e uma dor de cabeça infernal. Parecia que tinhas um sino dentro da cabeça. Um sino! Olhaste para o smoking pendurado na porta do guarda roupa, estavas atrasado. Terrivelmente atrasado.
As crianças berrando no quintal pareciam não se importar com o sol que castigava a casa suburbana. As árvores ao redor ajudavam um pouco com a sombra, mas o telhado sem forro transformava a casa num forno. Divertia-se sem camisa lendo a página de garotas de programa, recheada de kellys, amandas, completas e turbinadas. Riu com uma pena daquelas meninas perdidas, precisando de um caminho mais reto, inda que duro. Mas a salvação, aprendeu, vinha a muito custo. Olhou o relógio da sala, na penteadeira ao lado da Palavra. Fez o sinal da cruz em respeito, ao passar os olhos pelo tomo, mas viu que devia apressar-se. Foi em busca da mulher, que até agora não havia trazido as roupas prontas.
Deu um grito alto, pra ver se ela aparecia logo, mas não teve resposta. Foi ao quarto pra ver se ao menos ela tinha separado o terno. Nada dela. Nada do terno. Era só o que faltava. Não pretendia atrasar-se. Deu mais um grito deixando o cômodo. Chegou à cozinha e nada da infeliz. Só uma panela apitando louca, competindo com a algazarra do jardim. Com a barulheira, nem adiantava gritar. Foi ao jardim mandar as crianças se calarem, ou que fossem procurar a mãe. Lá fora é que foi achar a esposa. Sentada nos degraus da escada.
— Mas por Deus, mulher! Onde tu tava que não veio com as roupa pronta?!
— Eu já ia levar. Tá tudo pronto na lavanderia. Só tava terminando de lustrar os sapato.
— Ora, me dá isso aqui que não tenho tempo pra perder. E anda pegar lá as roupa que já tô atrasado. Onde já se viu chegar assim tarde na cerimônia?
Passaste correndo por baixo do chuveiro. Só o suficiente para a água gelada lavar o suor e carregar o cheiro para o ralo. As gotas caiam retumbantes na cabeça, parecendo fazer eco dentro do crânio. O sabonete parecia áspero à pele. O estômago, por um momento ao menos, tinha melhorado. Desligaste o chuveiro e passas-te à toalha, que lembrava uma lixa às costas e uma betoneira à cabeça. Usaste uma dose maior de desodorante, para disfarçar qualquer odor remanescente, e sentiste o estômago revirar ao cheiro. Seguraste a respiração para borrifar o perfume ao redor do pescoço. Mesmo assim, dessa vez, com o cheiro o estômago se rendeu e inundaste a pia ali mesmo, com uma mistura quase toda líquida, que bem poderia abastecer teu carro e fazê-lo pegar. Por sorte, com a ausência de sólidos, a pia logo esvaziou-se. Escarraste uma vez, preparaste a escova de dentes e, para disfarçar melhor, aplicaste uma boa dose de enxaguante bucal. Depois de tudo, já de smoking, mal se percebiam as olheiras. Estavas pronto, apresentável, mas ainda atrasado. A caminho do carro sacaste o celular com os olhos ardendo sob o sol forte.
Eu juro por tudo quanto me é sagrado que, Deus que me perdoe, se não tivesse tanta gente ali eu já teria bebido a água benta. Misericórdia! Já estava me preocupando com o horário. Leopoldo deveria estar chegando. Aliás, não demoraria a própria noiva chegaria. O meu celular tocou por baixo do terno cáqui. Levantei a aba para pegar e pude ver a rodela de suor embaixo do braço. Agora mesmo é que eu não poderia tirar o terno. Peguei o celular pra ver o nome de Leopoldo piscando. “Chegas logo?”, perguntei.
— Atrasei-me!
— Isto percebo eu — respondi.
— Elisabete chegou?
— Ainda não, mas não tarda. Quase todos estão aqui.
— Não deixe que chegue antes de mim. Estou a caminho.
— Que queres que eu faça? Que me atire em frente ao carro?
— Se preciso for. Estou a caminho.
Desligou sem despedir-se. Havia atrasado de nervoso, decerto. Estas incertezas sempre abatem-se aos quase noivos. É o que dizem, ao menos, os mais experientes. Não bastasse o calor, tive de descer a ruela que ligava a entrada da igreja à rua principal e, sob o sol que só arde daquele jeito no vale, me pus a esperar o sedan da noiva. Ajeitei o chapéu para que o sol não me ofuscasse mais, aliviei-me do terno, que ali já não havia mais ninguém a esperar — que ninguém em sã consciência o faria sob tal sol — e afrouxei só um tiquinho a gravata, que tinha medo de desfazer o nó e não conseguir refazê-lo.
Vestiu o terno cinza, ajeitou a gravata vinho sobre a camisa clara, penteou os cabelos com gel e calçou os sapatos lustrados. Usou o lencinho de lapela para enxugar um fio de suor que escapou pela costeleta decepada. Conferiu a Bíblia com os marcapáginas já encaixados. Passando pela cozinha a mulher perguntou-lhe:
— Vai demorar a cerimônia, lá? Vai vir almoçar, né?
— Ah, é! Vou almoçar lá. Aproveitar o bufê.
— Mas podia ter falado, homem de deus, que eu não preparava tudo.
— To falando agora. Vou comer lá.
E saiu porta a fora só pra ver as crianças correndo em sua direção rindo, com as mãozinhas levantadas para ele.
— Não! — gritou. — Não vão sujar o terno que acabei de colocar. — Continuou, esquivando-se da primeira criança.
— E chega dessa gritaceira. Vão pra dentro já!
Nem ouviu o muxoxo das filhas enquanto caminhava para o carro. O veículo deixou para trás um rastro de poeira e fumaça no ar enquanto o subúrbio ia ficando para trás. Na traseira, na lataria, o símbolo de um peixe feito com dois arcos cromados.
O sedan preto virou a curva lá atrás e veio na minha direção. Pensei numa desculpa enquanto colocava o terno e esperava o carro embicar na ruela que levava à igreja. Tirei o chapéu em cumprimento e o carro parou ao meu lado. O vidro baixou e eu me reclinei na janela para falar com o motorista. A brisa que escapou lá dentro foi com um sopro do bom deus. O ar condicionado me acertou no rosto como um beijo mágico e eu quase enfiei a cabeça toda janela a dentro. No banco de trás Elisabete estava bastante bonita, com o vestido branco, bem maquiada e envolta por aquele ar fresco e revigorante. Vestia ainda um sorriso de alegria sincera mas o olhar deixou escapar uma centelha de dúvida ao me ver. Foi então que me dei conta da expressão do motorista, seu pai, mais de dúvida que de alegria, ao me ver ali a barrar o caminho à igreja.
— Bom dia, seu Alfredo, Dona Marta, Elisabete. Chegou o grande dia então!
— Estão todos nos esperando? — perguntou seu Alfredo, com uma flexão inconfundível no todos.
— Todos, mas nós só vamos ter que dar uns minutos a Leopoldo para que se recomponha ao chegar. Acabou de trocar o pneu a duas quadras daqui, que furou. Mas já está a caminho.
Um “coitadinho” escapou do banco de trás, uma cara de pena do banco do passageiro e do banco do motorista nada.
— Só mais uns minutos que ele logo chegará, daí mais uns cinco minutos para que se recomponha e tudo estará acertado. Porque não estacionam naquela sobra sob a árvore? Faz um calor dos diabos aqui fora.
O vidro da janela tornou a subir e o sedan se movimentou em marcha lenta até a sombra. Saquei do celular novamente, agora mais suado pelo nervosismo, e disquei o número de Leopoldo.
Aceleravas trocando de faixas sem dar sinal. Furaste o último sinal ao ver que não havia muito movimento. Já vias a torre da igreja com o relógio acusador quando o celular no console tocou. Dirigindo com uma mão, atendeste a ligação. Do outro lado a voz familiar:
— Estavas a trocar pneus.
— Ótimo, já estou virando a quadra. Chego em dois minutos.
Antes de virar a última esquina encostaste o carro e, sem desligar o motor, saltaste para tirar a calota da roda dianteira direita, e a jogaste no banco de trás. Tornaste a entrar no carro e contornaste a curva para ver, mais adiante, o sedan preto sob a árvore, e uma figura esguia de branco na esquina da ruela da igreja.
Desliguei e acenei um sorriso amarelo ao olhar que me mirava pelo retrovisor esquerdo do carro preto. Não demorou e o carro de Leopoldo despontou mesmo à esquina. Passou em velocidade normal e fez um aceno breve para o sedan. Olhou-me com um sorriso ao passar por mim e subi a ruela logo em seguida. Antes, me virei para o motorista-pai-da-noiva. Com o indicador bati duas vezes no meu relógio e mostrei os cinco dedos da mão espalmada.
Já estava ficando impaciente. Os convidados na porta conversavam mas ele ouvia apenas a carola repassando as músicas no teclado eletrônico de batida pré-programada. O estômago roncava e as pernas se cansavam. Ao menos na nave era mais fresco e os ventiladores afugentavam o pior do calor. Olhou em reprovação quando viu o jovem de smoking chegar apressado acompanhado pelo outro de roupas claras. Nem se dignou a tirar o chapéu na Casa do Senhor! Foram à recepção da igreja e fecharam a porta. Distraiu então o pensamento observando de forma discreta os vestidos floridos de alguma jovens senhoras mais próximas.
— Estás louco? É teu casamento, por deus! O que estavas pensando?
— Desculpe. Atrasei-me, apenas. Está tudo bem agora. Como estou?
— Estás bem melhor que eu, que tive que esperar-te neste sol de rachar cocos na companhia do teu sogro.
— E Elisabete como está?
— Está bem. Alegre. Bastante bonita e feliz.
— Ótimo. Deixe que eu vá cumprimentar as tias e parentes e vamos começar logo com isso.
Passaste cumprimentando tias e primas e primos e tios e sobrinhos e amigos e parentes. Mais dela do que teus. Todos maquiados, purpurinados e arrumados para o grande dia. Viste a nave guardada pelo pastor de gravata vinho e cabelo engomado, meio impaciente. E foste te preparar para tua entrada.
Observou os convidados se assentarem e a igreja silenciar para dar sinal à velha do teclado. Ouviu a música soar, encobrindo o ronco do estômago, e a igreja inteira levantar-se, inclusive as jovens senhoras de vestidos floridos. Da porta principal viu a delegação de testemunhas, noivo, mães, damas de honra chegarem. A marcha nupcial trouxe a noiva em um vestido branco com um decote discreto mas que, do alto do altar, já propiciava uma visão satisfatória. Pregou como se falasse realmente com os noivos, sem tirar os olhos deles — especialmente da noiva, que excepcionalmente bonita não era, veja bem, mas trazia uma bela maquiagem e vestido condizente — o que deixou as futuras sogras lisonjeadas. Pregou sobre o casamento e a comunhão, sobre tornar-se um só espírito. Sobre a fidelidade, de corpo e pensamento, sobre auxiliar-se mutuamente. Pregou sobre filhos e como estes devem ser amados no seio — seio! — da família.
O discurso não terminava...
O discurso não terminava...
...e eu não conseguia parar de olhar pra pira de água benta, fresca, jordaniana, sagrada para aplacar minha sede.
...e tu já pressentias a dor de cabeça que começava a despertar. Ao menos o estômago, já vazio, havia parado um pouco de reclamar.
Finalmente mandou que os noivos se beijassem. Viu os presentes aplaudirem e todos se prepararem para deixar a igreja, depois de muitas congratulações. Fechou a Bíblia, virou-se para a cruz atrás de si, fez o gesto sacro e retirou-se à sacristia, pensando em quais iguarias encontraria no bufê, visto que suas funções sagradas haviam terminado — e muito bem cumpridas, sim senhor.
Despediste-te dos convidados, do teu padrinho e dos pais de ambos com um “até a recepção”. Tomaste tua noiva pela mão e entraste no carro com ela. As latas amarradas no parachoques fizeram um estardalhaço que te fez badalar os sinos da cabeça. Tua agora esposa deu-te um beijo no rosto, ao pé do ouvido, e com uma cara que não pudeste compreender disse:
— É gliter, que tens no pescoço?
— Deve ser, cumprimentei tuas tias há pouco — respondeste rapidamente.
Fiquei assistindo o sedan preto dobrar a ruela e acenei com o chapéu, só para sentir o sol escaldar-me os miolos. A maior parte dos convidados já se ia para a recepção atrás do carro e achei por bem fazer o mesmo, afinal padrinho que é padrinho não se atrasa para a recepção dos noivos. E o sol também já me fazia suar embaixo do terno novamente. Antes de ir, claro, fui benzer-me, que modos me ensinaram para deixar a igreja. Bom deus não me permita deixar a Casa do Senhor sem fazer o sinal da cruz com água benta.
Acordaste com os olhos ardendo pela luz que entreva pelas cortinas abertas. O estômago ainda embrulhado dos gin tônicas da noite anterior. E das cervejas. E também das doses de tequila. Na boca o gosto do sal e de algo entre sebo e cabo de guarda-chuva, ainda que nunca tenhas provado da iguaria. O quarto cheirava a anteontem, uma mistura de cinzeiro, bebida e suor. Tinhas suado a noite toda e o sol da manhã já te cozinhara ao ponto de te acordar. Por que o maldito verão era sempre tão quente? Descolaste a cabeça da fronha molhada e o movimento trouxe uma breve náusea e uma dor de cabeça infernal. Parecia que tinhas um sino dentro da cabeça. Um sino! Olhaste para o smoking pendurado na porta do guarda roupa, estavas atrasado. Terrivelmente atrasado.
As crianças berrando no quintal pareciam não se importar com o sol que castigava a casa suburbana. As árvores ao redor ajudavam um pouco com a sombra, mas o telhado sem forro transformava a casa num forno. Divertia-se sem camisa lendo a página de garotas de programa, recheada de kellys, amandas, completas e turbinadas. Riu com uma pena daquelas meninas perdidas, precisando de um caminho mais reto, inda que duro. Mas a salvação, aprendeu, vinha a muito custo. Olhou o relógio da sala, na penteadeira ao lado da Palavra. Fez o sinal da cruz em respeito, ao passar os olhos pelo tomo, mas viu que devia apressar-se. Foi em busca da mulher, que até agora não havia trazido as roupas prontas.
Deu um grito alto, pra ver se ela aparecia logo, mas não teve resposta. Foi ao quarto pra ver se ao menos ela tinha separado o terno. Nada dela. Nada do terno. Era só o que faltava. Não pretendia atrasar-se. Deu mais um grito deixando o cômodo. Chegou à cozinha e nada da infeliz. Só uma panela apitando louca, competindo com a algazarra do jardim. Com a barulheira, nem adiantava gritar. Foi ao jardim mandar as crianças se calarem, ou que fossem procurar a mãe. Lá fora é que foi achar a esposa. Sentada nos degraus da escada.
— Mas por Deus, mulher! Onde tu tava que não veio com as roupa pronta?!
— Eu já ia levar. Tá tudo pronto na lavanderia. Só tava terminando de lustrar os sapato.
— Ora, me dá isso aqui que não tenho tempo pra perder. E anda pegar lá as roupa que já tô atrasado. Onde já se viu chegar assim tarde na cerimônia?
Passaste correndo por baixo do chuveiro. Só o suficiente para a água gelada lavar o suor e carregar o cheiro para o ralo. As gotas caiam retumbantes na cabeça, parecendo fazer eco dentro do crânio. O sabonete parecia áspero à pele. O estômago, por um momento ao menos, tinha melhorado. Desligaste o chuveiro e passas-te à toalha, que lembrava uma lixa às costas e uma betoneira à cabeça. Usaste uma dose maior de desodorante, para disfarçar qualquer odor remanescente, e sentiste o estômago revirar ao cheiro. Seguraste a respiração para borrifar o perfume ao redor do pescoço. Mesmo assim, dessa vez, com o cheiro o estômago se rendeu e inundaste a pia ali mesmo, com uma mistura quase toda líquida, que bem poderia abastecer teu carro e fazê-lo pegar. Por sorte, com a ausência de sólidos, a pia logo esvaziou-se. Escarraste uma vez, preparaste a escova de dentes e, para disfarçar melhor, aplicaste uma boa dose de enxaguante bucal. Depois de tudo, já de smoking, mal se percebiam as olheiras. Estavas pronto, apresentável, mas ainda atrasado. A caminho do carro sacaste o celular com os olhos ardendo sob o sol forte.
Eu juro por tudo quanto me é sagrado que, Deus que me perdoe, se não tivesse tanta gente ali eu já teria bebido a água benta. Misericórdia! Já estava me preocupando com o horário. Leopoldo deveria estar chegando. Aliás, não demoraria a própria noiva chegaria. O meu celular tocou por baixo do terno cáqui. Levantei a aba para pegar e pude ver a rodela de suor embaixo do braço. Agora mesmo é que eu não poderia tirar o terno. Peguei o celular pra ver o nome de Leopoldo piscando. “Chegas logo?”, perguntei.
— Atrasei-me!
— Isto percebo eu — respondi.
— Elisabete chegou?
— Ainda não, mas não tarda. Quase todos estão aqui.
— Não deixe que chegue antes de mim. Estou a caminho.
— Que queres que eu faça? Que me atire em frente ao carro?
— Se preciso for. Estou a caminho.
Desligou sem despedir-se. Havia atrasado de nervoso, decerto. Estas incertezas sempre abatem-se aos quase noivos. É o que dizem, ao menos, os mais experientes. Não bastasse o calor, tive de descer a ruela que ligava a entrada da igreja à rua principal e, sob o sol que só arde daquele jeito no vale, me pus a esperar o sedan da noiva. Ajeitei o chapéu para que o sol não me ofuscasse mais, aliviei-me do terno, que ali já não havia mais ninguém a esperar — que ninguém em sã consciência o faria sob tal sol — e afrouxei só um tiquinho a gravata, que tinha medo de desfazer o nó e não conseguir refazê-lo.
Vestiu o terno cinza, ajeitou a gravata vinho sobre a camisa clara, penteou os cabelos com gel e calçou os sapatos lustrados. Usou o lencinho de lapela para enxugar um fio de suor que escapou pela costeleta decepada. Conferiu a Bíblia com os marcapáginas já encaixados. Passando pela cozinha a mulher perguntou-lhe:
— Vai demorar a cerimônia, lá? Vai vir almoçar, né?
— Ah, é! Vou almoçar lá. Aproveitar o bufê.
— Mas podia ter falado, homem de deus, que eu não preparava tudo.
— To falando agora. Vou comer lá.
E saiu porta a fora só pra ver as crianças correndo em sua direção rindo, com as mãozinhas levantadas para ele.
— Não! — gritou. — Não vão sujar o terno que acabei de colocar. — Continuou, esquivando-se da primeira criança.
— E chega dessa gritaceira. Vão pra dentro já!
Nem ouviu o muxoxo das filhas enquanto caminhava para o carro. O veículo deixou para trás um rastro de poeira e fumaça no ar enquanto o subúrbio ia ficando para trás. Na traseira, na lataria, o símbolo de um peixe feito com dois arcos cromados.
O sedan preto virou a curva lá atrás e veio na minha direção. Pensei numa desculpa enquanto colocava o terno e esperava o carro embicar na ruela que levava à igreja. Tirei o chapéu em cumprimento e o carro parou ao meu lado. O vidro baixou e eu me reclinei na janela para falar com o motorista. A brisa que escapou lá dentro foi com um sopro do bom deus. O ar condicionado me acertou no rosto como um beijo mágico e eu quase enfiei a cabeça toda janela a dentro. No banco de trás Elisabete estava bastante bonita, com o vestido branco, bem maquiada e envolta por aquele ar fresco e revigorante. Vestia ainda um sorriso de alegria sincera mas o olhar deixou escapar uma centelha de dúvida ao me ver. Foi então que me dei conta da expressão do motorista, seu pai, mais de dúvida que de alegria, ao me ver ali a barrar o caminho à igreja.
— Bom dia, seu Alfredo, Dona Marta, Elisabete. Chegou o grande dia então!
— Estão todos nos esperando? — perguntou seu Alfredo, com uma flexão inconfundível no todos.
— Todos, mas nós só vamos ter que dar uns minutos a Leopoldo para que se recomponha ao chegar. Acabou de trocar o pneu a duas quadras daqui, que furou. Mas já está a caminho.
Um “coitadinho” escapou do banco de trás, uma cara de pena do banco do passageiro e do banco do motorista nada.
— Só mais uns minutos que ele logo chegará, daí mais uns cinco minutos para que se recomponha e tudo estará acertado. Porque não estacionam naquela sobra sob a árvore? Faz um calor dos diabos aqui fora.
O vidro da janela tornou a subir e o sedan se movimentou em marcha lenta até a sombra. Saquei do celular novamente, agora mais suado pelo nervosismo, e disquei o número de Leopoldo.
Aceleravas trocando de faixas sem dar sinal. Furaste o último sinal ao ver que não havia muito movimento. Já vias a torre da igreja com o relógio acusador quando o celular no console tocou. Dirigindo com uma mão, atendeste a ligação. Do outro lado a voz familiar:
— Estavas a trocar pneus.
— Ótimo, já estou virando a quadra. Chego em dois minutos.
Antes de virar a última esquina encostaste o carro e, sem desligar o motor, saltaste para tirar a calota da roda dianteira direita, e a jogaste no banco de trás. Tornaste a entrar no carro e contornaste a curva para ver, mais adiante, o sedan preto sob a árvore, e uma figura esguia de branco na esquina da ruela da igreja.
Desliguei e acenei um sorriso amarelo ao olhar que me mirava pelo retrovisor esquerdo do carro preto. Não demorou e o carro de Leopoldo despontou mesmo à esquina. Passou em velocidade normal e fez um aceno breve para o sedan. Olhou-me com um sorriso ao passar por mim e subi a ruela logo em seguida. Antes, me virei para o motorista-pai-da-noiva. Com o indicador bati duas vezes no meu relógio e mostrei os cinco dedos da mão espalmada.
Já estava ficando impaciente. Os convidados na porta conversavam mas ele ouvia apenas a carola repassando as músicas no teclado eletrônico de batida pré-programada. O estômago roncava e as pernas se cansavam. Ao menos na nave era mais fresco e os ventiladores afugentavam o pior do calor. Olhou em reprovação quando viu o jovem de smoking chegar apressado acompanhado pelo outro de roupas claras. Nem se dignou a tirar o chapéu na Casa do Senhor! Foram à recepção da igreja e fecharam a porta. Distraiu então o pensamento observando de forma discreta os vestidos floridos de alguma jovens senhoras mais próximas.
— Estás louco? É teu casamento, por deus! O que estavas pensando?
— Desculpe. Atrasei-me, apenas. Está tudo bem agora. Como estou?
— Estás bem melhor que eu, que tive que esperar-te neste sol de rachar cocos na companhia do teu sogro.
— E Elisabete como está?
— Está bem. Alegre. Bastante bonita e feliz.
— Ótimo. Deixe que eu vá cumprimentar as tias e parentes e vamos começar logo com isso.
Passaste cumprimentando tias e primas e primos e tios e sobrinhos e amigos e parentes. Mais dela do que teus. Todos maquiados, purpurinados e arrumados para o grande dia. Viste a nave guardada pelo pastor de gravata vinho e cabelo engomado, meio impaciente. E foste te preparar para tua entrada.
Observou os convidados se assentarem e a igreja silenciar para dar sinal à velha do teclado. Ouviu a música soar, encobrindo o ronco do estômago, e a igreja inteira levantar-se, inclusive as jovens senhoras de vestidos floridos. Da porta principal viu a delegação de testemunhas, noivo, mães, damas de honra chegarem. A marcha nupcial trouxe a noiva em um vestido branco com um decote discreto mas que, do alto do altar, já propiciava uma visão satisfatória. Pregou como se falasse realmente com os noivos, sem tirar os olhos deles — especialmente da noiva, que excepcionalmente bonita não era, veja bem, mas trazia uma bela maquiagem e vestido condizente — o que deixou as futuras sogras lisonjeadas. Pregou sobre o casamento e a comunhão, sobre tornar-se um só espírito. Sobre a fidelidade, de corpo e pensamento, sobre auxiliar-se mutuamente. Pregou sobre filhos e como estes devem ser amados no seio — seio! — da família.
O discurso não terminava...
O discurso não terminava...
...e eu não conseguia parar de olhar pra pira de água benta, fresca, jordaniana, sagrada para aplacar minha sede.
...e tu já pressentias a dor de cabeça que começava a despertar. Ao menos o estômago, já vazio, havia parado um pouco de reclamar.
Finalmente mandou que os noivos se beijassem. Viu os presentes aplaudirem e todos se prepararem para deixar a igreja, depois de muitas congratulações. Fechou a Bíblia, virou-se para a cruz atrás de si, fez o gesto sacro e retirou-se à sacristia, pensando em quais iguarias encontraria no bufê, visto que suas funções sagradas haviam terminado — e muito bem cumpridas, sim senhor.
Despediste-te dos convidados, do teu padrinho e dos pais de ambos com um “até a recepção”. Tomaste tua noiva pela mão e entraste no carro com ela. As latas amarradas no parachoques fizeram um estardalhaço que te fez badalar os sinos da cabeça. Tua agora esposa deu-te um beijo no rosto, ao pé do ouvido, e com uma cara que não pudeste compreender disse:
— É gliter, que tens no pescoço?
— Deve ser, cumprimentei tuas tias há pouco — respondeste rapidamente.
Fiquei assistindo o sedan preto dobrar a ruela e acenei com o chapéu, só para sentir o sol escaldar-me os miolos. A maior parte dos convidados já se ia para a recepção atrás do carro e achei por bem fazer o mesmo, afinal padrinho que é padrinho não se atrasa para a recepção dos noivos. E o sol também já me fazia suar embaixo do terno novamente. Antes de ir, claro, fui benzer-me, que modos me ensinaram para deixar a igreja. Bom deus não me permita deixar a Casa do Senhor sem fazer o sinal da cruz com água benta.
Marcadores:
Literatura - Prosa,
Rodrigo Oliveira
Minhas falações de Falações no Sarau
O ensaio/crítica/resenha que eu fiz do livro Falações, de Marcelo Labes, saiu lá no Sarau Eletrônico. Pra quem é de Santa e quer conhecer a literatura daqui, não pode deixar de ao menos visitar o Sarau. Coisinhas bacanas por lá. E pra quem não é e tb curte literatura, dêem uma olhada nos ensaios. Fica tb o agradecimento ao Viegas e ao pessoal do Sarau pelo espaço e ao Labes pelas significativas palavras sobre isso no seu blog.
Pra acessar o Sarau Eletrônico e ler "Poesia Twist. Poemas com um toque de limão", clique aqui.
Para acessar o Labes, tens links ali do lado.
Pra acessar o Sarau Eletrônico e ler "Poesia Twist. Poemas com um toque de limão", clique aqui.
Para acessar o Labes, tens links ali do lado.
Assinar:
Postagens (Atom)