Faz quase cinco anos que cheguei a este paraíso gelado. Nunca estive em um lugar assim. Claro, já tinha antes estado em lugares bem frios, tinha visto a neve, mas nunca pude tê-la nas mãos em maior quantidade. Uma vez até tentei montar um boneco de neve, mas não deu muito certo. A neve não era suficiente. Inclusive tentei completar com uns cubos de gelo roubados da geladeira, mas ainda assim o máximo que consegui foi uma meia cabeça derretida na calçada, que logo virou mais uma poça d’água. Mas aqui tudo é diferente. O vento frio sopra os poemas mais profundos, as imensidões se derramam em longas vagas, enchendo os olhos até transbordarem de admiração. A vastidão branca se desnuda brilhante sob um céu rajado de nuvens de seda em um nascer do sol que não acaba nunca. A luz que não se vai, a eterna aurora ao som do mar com sua canção de encontro às costas alvas. Longe dos trópicos reina a paz do sul do mundo, de gelo, neve e luz. Aqui, um boneco de neve poderia se elevar até que sua sombra cobrisse a ponta da América e, ainda assim, não faltaria gelo, e ele jamais derreteria. Quando cheguei aqui pela primeira vez, não estava muito adaptado a este mundo. Uma coisa era caminhar sobre a neve que caía uma vez por ano, outra era viver cercado dela, abraçar as tempestades e dançar sobre lagos congelados. Mas o ar gélido que me beijou as faces quando desembarquei aqui me arrebatou. Havia ainda um barco me esperando na costa pra voltar aos trópicos. Mas para isso teria de deixar para trás este continente gelado que, sem que eu saiba o porquê, me fascinava e seduzia. Na praia gelada vi o barco zarpar de volta a América, de volta àquelas pequenas ilhas tropicais. Eu não estava a bordo. De que precisaria eu daquelas ilhas, se tinha todo aquele continente alvo só para mim, com suas planícies gélidas, os belos montes nevados, suas cavernas enregeladas e aquela aurora sempre brilhante? Desde então nunca mais tornei a ver qualquer uma daquelas ilhas, nem aqueles barcos, nem o sufocante calor tropical. Muito, muito ao longe, passavam distantes, débeis batéis, diminutos no horizonte, mas que pareciam enfadonhos e acinzentados, indignos de qualquer atenção. Um novo mundo aguardava para ser explorado.
O início foi meio trôpego, não sabia os atalhos das planícies, não sabia divisar o caminho pela neve, o meu corpo ainda não se acostumara à temperatura austral. Mas aos poucos fui me adaptando. O caminhar já não me afundava tanto na neve, os caminhos tornaram-se visíveis, o excesso de vestimenta, desnecessário. E cada dia eu me tornava um com aquele mundo. O meu mundo. Explorei aquele paraíso meridional com o ardor dos grandes exploradores. Atravessei as geladas planícies observando cada monte de neve, medi cada banquisa palmo a palmo, me deslumbrei naquelas vastidões. Nadei nas águas geladas, explorei os lagos subterrâneos, deslizei sobre a água congelada, dancei em meio à nevasca. Finalmente compreendi do que falavam os grandes navegadores. O êxtase da descoberta, de encontrar o seu pedaço de mundo. Escalei as montanhas nevadas agarrando-me ao gelo com as mãos nuas, comprimindo meu rosto contra o solo macio, sentindo o sabor da neve nos lábios. Desci as encostas deleitando-me com a vista de um vale de branco puro, onde uma névoa misteriosa pairava baixinho, desnudando aos poucos as formas do relevo. Desci devagar por aquele vale, na neblina envolvente, ouvindo o vento gemendo baixinho ao passar pelas cavernas ocultas na névoa. Cheguei àquelas cavernas guiado pela brisa. Toquei as paredes externas sentindo o gelo suave como cristal, provavelmente polido pela ação do vento. Adentrei um pouco a caverna, explorando cada face de cristal, cada brilho gélido, os diferentes tremeluzires das luzes e reflexos. Prossegui para o interior daquele santuário congelado, correndo as mãos pelas paredes, tocando as estalactites do teto, ouvindo o vento uivar. Aprofundei-me por aqueles corredores e com júbilo admirei a caverna se derretendo. A umidade escorrendo pelas paredes, o solo molhado ecoando meus passos, o vento me recebendo com um suspiro quando retornava daquelas profundezas. Deitei-me sobre a neve num vau, ouvindo as ondas e admirando extasiado o nascer do sol. Nenhuma aurora era como aquela. Nas terras que antes habitava, o sol nascia rápido e logo o calor se tornava incômodo. Mas ali não, ali o sol se demorava numa aurora eterna, com a brisa oceânica soprando e a neve macia me embalando.
Mas mesmo no paraíso mudam-se as estações. Mesmo aqui, as nuvens por vezes encobrem o sol. Nem toda a noite a aurora austral brilha no céu. Agora uma sombra se arrasta cobrindo o gelo, que se acinzenta, perde o brilho. Já não parece o mesmo lugar. O gelo sob os meus pés estala. Abaixo dele águas escuras guardam segredos que não me chegam. Só vejo vultos cruzando por sob o piso, mas não posso identificar o que sejam. Ando agora sobre gelo fino, com medo, preocupado, que talvez o gelo não possa me suportar. Talvez por ter os olhos sempre voltados para o alto admirando a aurora, não tenha percebido que abaixo de mim a escuridão se contrapunha à luz. Só agora, ao ouvir o trincar do chão, lembro que o mar inconstante sempre esteve sob o gelo.
O início foi meio trôpego, não sabia os atalhos das planícies, não sabia divisar o caminho pela neve, o meu corpo ainda não se acostumara à temperatura austral. Mas aos poucos fui me adaptando. O caminhar já não me afundava tanto na neve, os caminhos tornaram-se visíveis, o excesso de vestimenta, desnecessário. E cada dia eu me tornava um com aquele mundo. O meu mundo. Explorei aquele paraíso meridional com o ardor dos grandes exploradores. Atravessei as geladas planícies observando cada monte de neve, medi cada banquisa palmo a palmo, me deslumbrei naquelas vastidões. Nadei nas águas geladas, explorei os lagos subterrâneos, deslizei sobre a água congelada, dancei em meio à nevasca. Finalmente compreendi do que falavam os grandes navegadores. O êxtase da descoberta, de encontrar o seu pedaço de mundo. Escalei as montanhas nevadas agarrando-me ao gelo com as mãos nuas, comprimindo meu rosto contra o solo macio, sentindo o sabor da neve nos lábios. Desci as encostas deleitando-me com a vista de um vale de branco puro, onde uma névoa misteriosa pairava baixinho, desnudando aos poucos as formas do relevo. Desci devagar por aquele vale, na neblina envolvente, ouvindo o vento gemendo baixinho ao passar pelas cavernas ocultas na névoa. Cheguei àquelas cavernas guiado pela brisa. Toquei as paredes externas sentindo o gelo suave como cristal, provavelmente polido pela ação do vento. Adentrei um pouco a caverna, explorando cada face de cristal, cada brilho gélido, os diferentes tremeluzires das luzes e reflexos. Prossegui para o interior daquele santuário congelado, correndo as mãos pelas paredes, tocando as estalactites do teto, ouvindo o vento uivar. Aprofundei-me por aqueles corredores e com júbilo admirei a caverna se derretendo. A umidade escorrendo pelas paredes, o solo molhado ecoando meus passos, o vento me recebendo com um suspiro quando retornava daquelas profundezas. Deitei-me sobre a neve num vau, ouvindo as ondas e admirando extasiado o nascer do sol. Nenhuma aurora era como aquela. Nas terras que antes habitava, o sol nascia rápido e logo o calor se tornava incômodo. Mas ali não, ali o sol se demorava numa aurora eterna, com a brisa oceânica soprando e a neve macia me embalando.
Mas mesmo no paraíso mudam-se as estações. Mesmo aqui, as nuvens por vezes encobrem o sol. Nem toda a noite a aurora austral brilha no céu. Agora uma sombra se arrasta cobrindo o gelo, que se acinzenta, perde o brilho. Já não parece o mesmo lugar. O gelo sob os meus pés estala. Abaixo dele águas escuras guardam segredos que não me chegam. Só vejo vultos cruzando por sob o piso, mas não posso identificar o que sejam. Ando agora sobre gelo fino, com medo, preocupado, que talvez o gelo não possa me suportar. Talvez por ter os olhos sempre voltados para o alto admirando a aurora, não tenha percebido que abaixo de mim a escuridão se contrapunha à luz. Só agora, ao ouvir o trincar do chão, lembro que o mar inconstante sempre esteve sob o gelo.
Um comentário:
belo texto.
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