quarta-feira, 18 de março de 2020

O Barqueiro da Babitonga

Imagem: The Lonely Boat Man, by Asha Sudhaker Shenoy.

O Barqueiro da Babitonga

23/06/2019

Era uma noite fresca de princípios de inverno. O ar salgado dava sabor à brisa que soprava feito o sussuro de um afogado. A neblina quase tocava a água da baía que movia apenas o suficiente para enunciar-se viva. O apito do trem sangrou a madrugada despertando quem talvez devesse continuar dormindo.

Como se tivesse ouvido, mesmo tão longe, numa ponta perdida da ilha, Vinícius acordou. A lembrança da noite anterior ainda tão nublada quanto a noite. O gosto do último trago na boca, no entanto, estava claro como um dia de sol. Os pelos do braço se arrepiando ao contato da bruma que impedia a visão além das paredes rotas das ruínas do antigo leprosário. Agarrou-se às raízes que agora adornavam a pedra e firmou-se sobre as pernas ainda meio bambas. Tudo o que via além da praça que abrigava as ruínas era uma mortalha branca que recobria a noite. Caminhou um pouco trôpego na direção da capela, desbravando a névoa que não cedia espaço. Mesmo dentro do pequeno oratório da praça a neblina se adensou a ponto de turvar o rosto da santinha. Não podia ver a mais de um metro adiante, mas logo percebeu ter tomado o caminho errado. A capela era contígua à praça e ainda não havia lhe chegado às paredes. Retornou com o braço estendido à frente como quem caminha no escuro. Se tivesse tomado o rumo certo já estaria de volta à praça e às velhas paredes do leprosário que lhe abrigaram do vento horas mais cedo.

A neblina já tinha devorado todos os pontos de referência e ainda se adensava. Tudo o que podia ver era uma sugestão da estrada de terra que se estendia a partir de seus pés. Parou desnorteado tentando vislumbrar algo que indicasse um caminho — àquela altura, qualquer caminho — para sair daquele frio. Ali parado foi quando ouviu o primeiro som da noite agreste e percebeu que o nevoeiro era tão denso que abafava até mesmo os sons ao redor. Era um som leve de cascalho movido, em princípio muito discreto mas logo mais perceptível. Vinha de algum ponto adiante como algo que se acerca sem pressa, mas também sem descanso. Não arriscou mover-se e a espera pareceu levar anos, a angústia já crescente feito a névoa que se erguia por todos os lados. O som ficou mais audível e um chamuscar de luz surgiu na noite, em um par de olhos a um metro de distância e a um metro do chão.

Um focinho de ponta grisalha perfurou a penumbra revelando um animal negro, à exceção dos pelos esbranquiçados pela idade que lhe cobriam a cara. O cão era grande e magro, de pelo hirsuto, com olhos de um brilho vago na escuridão, cobertos por uma capa esbranquiçada como de catarata. Ou como se contivessem a própria bruma capturada nas órbitas. Um espuma branca lhe cobria a boca e gotejava sobre o chão, que vencia lentamente pelos passos compassados e o arrastar de uma das patas traseiras. O animal mantinha o seu ritmo mas havia algo de hostil naqueles olhos nebulosos e naquele pelo arrepiado. Vinícius hesitou por um segundo, mas com a criatura tão próxima, logo deu um passo atrás. E mais outro, como se a neblina que engolfava o cão o pudesse conter. Pensou ter ouvido um rosnado lançar-se na noite e, dando meia-volta, correu às cegas se distanciando do animal que coxeava nas trevas. Os passos largos cobriam de uma passada tudo o que havia de visível, lançando-o a cada momento para o meio da névoa e escuridão.

Não demorou e a um passo sentiu a areia fofa e no seguinte já ouviu o som do chapinhar na água. O calçado encharcou-se com a água fria quase ao mesmo tempo em que a vegetação lhe tocara o rosto. Já não ouvia a besta, mas estava perdido no frio da restinga coberta de névoa. Parou por um momento com ouvidos atentos e os dedos dos pés gelados. Pela tensão, pela corrida ou pela noite anterior da qual já mal se lembrava, tinha a boca seca, a cabeça doía de leve e sentia sede. Mas sabia que a água que lhe tocava os pés certamente seria salgada. Vagou feito uma canoa à deriva, desejando apenas deixar aqueles alagadiços e sentir a terra firme sob seus pés.

Bastou para isso dar mais um passo e sentiu um galho lhe roçar o rosto e o pé tocando uma elevação. A neblina continuava espessa, mas o som das marolas foi substituído pelo dos insetos na noite. Um piar de uma coruja soou em algum lugar e o passo seguinte revelou, no limiar da névoa, uma mata bem mais fechada do que aquela da restinga. Notou o desnível no solo, a perna da frente sempre mais flexionada que a de trás, como quem se encontra frente à uma colina. Não tinha certeza se tinha mais medo do cão ou de estar agora perdido na mata, no meio da noite, sozinho em algum lugar desconhecido. Já nem se importava com o caminho de casa. Queria encontrar um caminho para onde quer que fosse, desde que lhe fosse ao menos familiar.

Caminhou mais uns dez passos morro acima na esperança de escapar do nevoeiro e logo encontrou algo que iluminava tênue a neblina. Seguiu o ponto de luz até chegar à sua origem. Um pequeno candeeiro aceso no chão iluminava um homem sentado em uma pedra recurvado sobre uma garrafa que trazia ao colo. O homem levantou o olhar para Vinícius e acompanhando um aceno de cabeça lhe sorriu por baixo do bigode branco. A pele era marcada pelo sol e maresia, fiapos de cabelo branco lhe escapavam por baixo do boné simples e tinha os olhos claros vivos como duas moedas de prata brilhantes.

— Boa noite — disse o homem, num ritmo rápido, quase comendo as palavras. Vinícius demorou um pouco para responder — boa noite.

Mal podia ver a garrafa que o homem tinha às mãos, mas apenas o vislumbre já lhe despertou a sede.

— Desculpe, mas o senhor pode me ajudar? Acho que me perdi.
— Também pudera, com esta neblina que se está a por sobre tudo!

Ele tinha o sotaque açoriano carregado e Vinícius mais uma vez demorou alguns segundos para finalmente entender o que disse o homem da lamparina.

— O Senhor pode me indicar o caminho para a cidade?
— Mas ora, se não pudesse não estaria eu aqui, não é? Apolônio, muito prazer. Prático nessas terras desde que me lembro por gente.
— Prazer, Seu Apolônio. Vinícius. E muito obrigado.

O homem colocou a garrafa no chão à sombra da pedra e se levantou pegando o lampião.

— Eu lhe levo até lá. Já era tempo de eu voltar mesmo.
— Muito obrigado. E se não for abusar, será não sobrou um gole para aliviar a garganta seca? — arriscou perguntar, apontando para a garrafa. Mas o prático pegou a garrafa e lhe mostrou acrescentando:

— Acho que isso não vai resolver o problema.

A garrafa não continha nenhum líquido, apenas um pequeno barquinho dentro. Uma canoa, na verdade, com um barqueiro em miniatura junto ao remo. A tinta que imitava o mar ainda não parecia bem seca. A peça não era muito elaborada, mas era bem feita. Com uma meia risada, o novo guia recolou o artesanato novamente ao lado da pedra e começou a caminhar.

— Por aqui.

Sem responder, Vinícius seguiu o homem que tentava abrir caminho entre o nevoeiro com seu candeeiro, como um bandeirante abrindo caminho na mata com um facão. A névoa era relutante a abrir caminho, mas aos poucos cedia espaço ao menos suficiente para que o passo seguinte fosse em terreno iluminado. Vinícius seguiu o prático como um navio manobrando na baía. Logo estavam em um declive, mas a umidade toda só fazia aumentar a sensação de sede. Aplacá-la era desejo que lhe turvava a mente tanto quanto o nevoeiro. Demorou muito pouco para sentir o calçamento da rua sob seus pés. Muito menos do que poderia ter esperado.

— Oh! —  o guia também pareceu surpreso.

A imagem de casas de paredes coloridas começava a aparecer próxima, como se surgindo de dentro da névoa. Logo chegaram à antiga bica d’água no que fora um dia o centro da cidade, séculos atrás.

— Ah! — o guia exclamou novamente, menos surpreso.

Com o desejo de aplacar a sede agora lhe guiando os passos, Vinícius desceu os velhos e desgastados degraus e, com as mãos em concha, capturou o filete de água que vertia junto à pedra e sorveu com prazer o frescor que lhe escorria pela garganta, feito um condenado que saboreia sua última refeição. Enquanto isso, Seu Apolônio aguardava à margem da neblina, admirando uma paisagem que não estava lá. Vinícius tornou a subir os degraus e o prático recomeçou o caminho.

— Seu Apolônio, ‘brigado, mas acho que daqui já consigo me achar.
— Com esta neblina? Nem pensar! Além do mais, acho que já estamos a chegar.

Sem enxergar mais do que uns passos à frente, o próprio Apolônio tinha nisso mais uma sensação do que uma certeza, mas sentia que a viagem realmente não devia demorar. O rapaz o seguiu, como supunha que o faria, e o ouviu perguntando “Como assim?”, enquanto ouvia seus passos no calçamento secular daquela ruela ladeada de antigas casas coloridas, inundada pela neblina e por um passado quase tão antigo como o próprio país. Passou pela pequena praça de nome francês, seguido por Vinícius, que viu o gato branco sentado sobre a mesa de concreto. Ao cruzar pelo animal, o rapaz viu-o erguer-se nas quatro patas arqueando a coluna, os pelos eriçados das costas, as orelhas baixas e um miado pouco amistoso. Vinícius se apressou e seguiu a luz da lamparina do prático mais à frente, que já quase sumia no nevoeiro e finalmente o alcançou desejando que aquilo tudo logo terminasse.

— Seu Apolônio… — começou a dizer.
— Chegamos — interrompeu o guia.

O som das marolas era baixo e mal podia-se ver a água que tocava a proteção de pedra da margem. O grasnar de uma gaivota soou lúgubre sobre a baía. O pássaro planava baixo, mas de repente bateu asas atrapalhado e trocou bruscamente de direção, perdendo toda sua graça.

Com as ondas, um vulto vinha das águas. Uma mancha negra vinda da névoa, quase disforme. Lembrava um pescador chegando com sua canoa, não fosse pelo manto pesado que lhe caía da cabeça aos pés, condizente, na verdade, com o frio que fazia. O barqueiro conduzia um bote de madeira impulsionado por uma enorme vara que trazia à mão.

— Vamos — disse Apolônio, subindo na embarcação.

Vinícius ficou parado, não ousando seguir o guia.

— Está tudo bem, pode subir. Não há nada pra ficar aqui.

Vinícius olhou em volta, tudo o que via era a parede branca de névoa.

— Vamos, oh, gajo, que é a única forma de sair daqui.

Sem muita certeza, resolveu seguir a única luz que ainda brilhava na imensidão branca, na mão do açoriano. Subiu ao barco sem mover a água sob o casco e viu o prático entregar um par de moedas ao barqueiro, sentindo o leve deslizar do bote sobre a água. Em segundos a margem foi engolida pela névoa e ele não teve muito a fazer exceto sentar-se ao lado do homem que lhe guiara até ali.

O barqueiro seguia seu rumo guiando em silêncio. Só se ouvia o som leve das ondas e o grito distante de uma gaivota. Logo, nem isso. O silêncio se tornou absoluto e o frio intenso. Vinícius começava a tiritar. Que o barqueiro não se incomodasse, coberto com o pesado manto, era compreensível, mas Apolônio, em mangas de camisa, deveria estar tremendo. A embarcação parou quando a neblina se adensou. Estava tão intensa que começava a encobrir o barqueiro e até o próprio prático ao lado de Vinícius.

— Seu Apolônio…
— Tu sabes, eu passei mais tempo do que imaginei cá nesta baía. Conheci cada banco de areia. Só não tinha ouvido ainda um silêncio como este.

Vinícius tremia de frio mas o velho parecia não se dar conta.

— Por que a gente parou? —  perguntou sem parar de tremer.
— Porque esta é nossa última viagem.
— Eu, eu, quero voltar — balbuciou entre medo e frio.
— Oh, mas você vai voltar.
— Mas, e… e a última viagem?
— Ora, a nossa última viagem. Não a sua.

Vinícius se virou para trás, a neblina fria a lhe penetrar os ossos, e já não via o barqueiro. Deslocou-se com cuidado até onde ele devia estar, cruzando a névoa e encontrando junto à popa apenas o longo remo e o manto caído. Voltou-se para o prático e divisou na névoa só a luz da lanterna, tentando manter a neblina afastada da proa.

Estava só, no meio da baía, cercado pela névoa, no mais inerte silêncio. A névoa parecia ter-lhe tomado conta e lhe entranhado no corpo, já lhe transbordando pela boca a cada baforada de encontro ao ar gélido. Ficou parado ali, encolhido e tremendo, o que pareceu uma eternidade. Não sabia mais o que fazer, mas não poderia ficar ali para sempre. O mundo era névoa, estagnação, frio e silêncio. E nada mais. Quase se abraçou à lamparina para se aquecer,  o mínimo que fosse. Foi à outra ponta da embarcação e vestiu o pesado manto do barqueiro, cobrindo com o capuz a cabeça, sentindo o volumoso tecido lhe aquecendo um pouco as orelhas. Aos poucos o frio pareceu menos hostil, ao menos o suficiente para tomar alguma atitude. Colocou a lanterna à proa para lhe guiar o caminho, tomou do remo e deu propulsão à barca. Voltaria à costa ou se perderia na neblina tentando.

Guiou-se como pôde por tanto tempo que quase se esquecera de como chegara ali. Mais um bom tempo se passou até que o som das águas ecoou novamente em seus ouvidos, talvez até um grasnar, dúbio e distante, tivesse despontado em algum lugar. Mas na popa do bote, sob o manto, quase nada se podia ouvir. Ao menos o frio já não o castigava tanto, se um dia o fizera. O vislumbre de um píer surgiu discreto na névoa. Ao impulso do remo a barca aprumou-se e navegou devagar. Aos poucos, duas figuras começaram a se fazer distintas. Dois homens, lado a lado, um deles com um candeeiro à mão. O outro tinha os olhos arregalados procurando algo na névoa.

A barca se aproximou até quase tocar o cais. O homem do candeeiro fez sinal ao outro:

— Pode ir, está tudo bem.

O homem de olhos arregalados subiu receoso ao bote e Vinícius estendeu a mão. Recebeu em retorno uma moeda do homem com a lamparina e, com um golpe sutil do remo, impulsionou novamente a barca às névoas da Babitonga.