sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Leituras extraviadas de Extraviário, de Dennis Radünz.

— “o poeta é o cego que, de repente, vê”
Anamnese, Dennis Radünz.

Há pouco tempo tentei escrever sobre Extraviário. Não procurava muito, não. Apenas uma resenhazinha ou um artigo descompromissado. Só uns apontamentos do que me saltou à leitura. O desejo ficou um tempo em suspensão. Simplesmente não sabia como começar. Extraviário é texto que se esquiva do texto. Fugidio, me deixou sem via mais de uma vez. Agora, retomo a tentativa. Quem sabe, dessa vez, ele se deixe capturar.

Extraviário é complexo. Daí provavelmente a minha dificuldade em discursar sobre ele. Extraviário rouba-nos a segurança do terreno comum. É difícil mesmo definir a obra. Por isso intriga. Não é uma leitura fácil, mas seus poemas têm um quê de musicalidade que tornam a leitura menos pesada do que se espera à primeira vista. Parte dessa complexidade se dá pelo fato de que a obra não ensina o leitor a lê-la. Ao contrário, mostra-se uma via inconstante, mudando a abordagem a cada passagem. Varia de experimentações de estilo em Ghost-Writer, tenta desconstruir a forma no quase concreto Música de Inverno, resgata as já consagradas no soneto À inconstância das coisas desse mundo. Extraviário torna-se, assim, experimental. O autor explora a forma, o fonema, o ritmo e a métrica, buscando distorcer uma, reinventar a outra, desconstruir a palavra e desafiar o idioma: “me nom deves de negar parávoas / oh Lengoa Portoglesa Brasiléria”.

Mas, se é difícil definir Extraviário, é na sua sonoridade que a obra ecoa. Com o domínio dos fonemas e aliterações, Radünz explora a oralidade e a musicalidade, envolvendo o leitor numa via de sibilanças orquestradas de forma a explorar a fonética, a dicção e conduzir o leitor através dos sons do poema. O texto torna-se, apesar de intrincado, fluido, liquefeito, mas não menos rebuscado. Torna-se quase música, como em Sobreaviso dos Sobrevividos:

(...)
respiram
alevinos e nenúfares
as vértebras visíveis
os açúcares salobros
sonados e insalubres
(...)

Ou no crítico Última Epístola ao Império:

“E a víbora da raiva – rápida – vibra em toda a relva,
Talvez vestal, talvez, às vezes máquina (...)”

Como em Crescente Fértil:

“o jorro de esperas em que nasce nessa vida a véspera
Sem nenhum duto de onde esvair esse devir de fonte”

Os temas de Extraviário também são vias inconstantes. Radünz flerta com erótico em Idéia com Mulher na Relva:

“intrusos na treva,
inteiriça e tesa,
talvez, erva-casta,
de onde o escuro,
casca, se enxota
e a relva esfolia-se, rosácea,

e

poliniza espaços
desencorpados
entre uns lábios
e úmidos lábios
onde deitou-se,
ereta, até a estrela aberta
(...)”

Beira o político em Última Espístola ao Império: “arrasta pelo ermo o turismo de desastres / nessa indústria do destroço, no rastilho sem a órbita / a serpe do império – talvez, o império serpe”

Canta o lírico em Fim de Fábula:

“se eu houvesse lhe mentido
e sobrasse apenas a saliva em seu ouvido
ou se eu lhe fosse ácido
e deixasse para si o amargo de um amor vencido
se eu houvesse lhe ferido
e restasse ainda a cicatriz em seu vestido
me responderias com um grito de sabor mal dito
como se houvesse lido uma história
de morangos mortos em um livro de hortelã

pores-do-sol, bocas-de-leão
brincos-de-princesa na escuridão
(...)”

Resgata o local, terrivelmente contemporâneo, em História Liquefeita:

“o rio rebenta as suas bordas
à beira de ácidos e de felpas
bordados em linha lânguida
na limalha de água cinzenta:
rio de vires sonoros: lento

mehr licht. milosc. memento mori.”

Extraviário é, enfim, uma via sinuosa. Não oferece um núcleo coeso constante ao redor do qual o leitor possa orbitar. Ao contrário, Radünz parece querer criar justamente um “lugar erradio em que o leitor se desorbita entre dois seres: o si mesmo e o ser no qual tornou-se, atravessado pelo texto”, que cita em Ghost-writer. E esse ser, atravessado pelo texto, torna-se dissociado, esquizofrênico, fora de órbita. Divide-se como propõe o ghost-writer de Radünz. E nessa divisão, algo em nós também se extravia. A certeza, talvez.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Coincidências de Segunda

Com problemas para atualizar por enquanto. Inclusive pro Duelo de Escritores tem sido meio corrido pra postar qq coisa. E entre falta de tempo e de monitores, isso fica mesmo meio parado. Sem muito o que escrever, tb, dedico este post a tirar a poeira destes bytes abandonados e dividir um fragmento da minha leitura online de hoje.

Por coincidência, li hj a entrevista da Urda Klüeger pro Sarau Eletrônico e ela mencionou, rapidamente, a questão palestina.

Por acaso, no blog Saramago, em um post acerca da situação na faixa de Gaza e a questão israleita/palestina, encontrei esta pérola "Compreendemos melhor o deus bíblico quando conhecemos os seus seguidores". Aquela frase que desarma e o leitor e perpetua-se por si própria. E Saramago segue: "Jeová, ou Javé, ou como se lhe chame, é um deus rancoroso e feroz que os israelitas mantêm permanentemente actualizado".

Em seguida, mais uma coincidência sobre o tema, visitando o ótimo Frases Ilustradas, ao encontrar mais uma grande passagem de Schopenhauer: “As religiões são como os vaga-lumes; precisam das trevas para esplender.”

Os temas se repetem. O erros, aparentemente, também. Como era no princípio, agora e sempre.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

A Narrativa no Formalismo Russo

Esse é um artigozinho meio chinfrim que fiz durante a pós. É uma abordagem superficial do Formalismo Russo, em especial na narrativa. Não acho que seja um texto especialmente consistente ou mesmo bom, mas acho pior deixar isso aqui parado por muito tempo. Quem sabe serve para alguém que esteja procurando um ponto de partida.


A NARRATIVA NO FORMALISMO RUSSO
Rodrigo Oliveira

1915. A data marca o que se convencionou chamar Formalismo Russo. Neste ano foi fundado por um grupo de estudantes, entre eles Roman Jakobson, o Círculo Lingüístico de Moscou, criado com o intuito de estudar a teoria literária, explorando novas abordagens no estudo da língua e da literatura, buscando uma nova visão sobre a literatura, a crítica e o fazer literário. Quase ao mesmo tempo, em Petersburgo, surgia a Associação para o Estudo da Linguagem Poética — OPOIAZ. Alguns dos membros do Círculo Lingüístico também tomaram parte deste novo núcleo, como o próprio Jakobson. Além dele, o OPOIAZ abarcou nomes como Boris Eikhenbaum, Victor Chklóvski e Ossip Brik. A associação propôs uma redefinição do objeto dos estudos literários, focando-se exclusivamente ao texto e refutando qualquer interpretação ou influência extraliterária, inclusas aí a filosofia, a psicologia e a sociologia, e elementos como o leitor, o autor e o contexto histórico.

Apesar de não constituírem uma visão hegemônica entre si, o OPOIAZ e o Círculo Lingüístico de Moscou dividiram visões aproximadas acerca do que deveria ser considerado literatura e sua relação com os padrões de crítica vigentes em voga até o início do século XX. Esse contraste com a crítica literária da época cunhou a ambos os núcleos a alcunha de “Formalistas”, ainda que esses intelectuais, e outros influenciados por eles, não assumissem um status de movimento propriamente dito.

Apesar disso, essas idéias críticas e seus ideais textualistas entraram para a história como o Formalismo Russo. Essa nova visão teve uma vida breve, propostas polêmicas, mas um legado de inegável valor até os dias atuais. Leon Trotsky, em seu Literatura e Revolução lega à Escola Formalista a alcunha pouco lisonjeira de “insólito aborto”. Mas em seguida, reconhece: “O trabalho, que os formalistas não temem denominar ciência formal da poesia ou poética, é indiscutivelmente necessário e útil, com a condição de que se deve considerar seu caráter parcial, subsidiário e preparatório”. E retoma afirmando que “Os métodos do formalismo, mantidos dentro de limites razoáveis, podem ajudar a esclarecer as particularidades artísticas e psicológicas da forma”. (Trotsky, 1969, pág. 144-145). A Escola Formalista deve, apesar de um marco histórico importante para a Teoria Literária e alicerce de para diversos movimentos e autores, ser apreciada com olhares cuidadosos, do ponto de vista de uma crítica literária contemporânea.

Mesmo após a dissipação desses grupos e a dispersão de seus membros pelo então ascendente regime stalinista, no final dos anos 20, o olhar crítico textualista do Formalismo influenciou outros pensadores e outros movimentos, como o New Criticism estadunidense e o Estruturalismo. O legado de um olhar mais cuidadoso para o texto e para a arte permanece influenciando críticos, escritores e artistas de diferentes movimentos.


A auto-suficiência do texto
O principal princípio do Formalismo Russo, como das demais correntes textualistas, é o próprio texto. O texto é, não apenas o objeto da crítica, como seu próprio limite. Dessa forma os formalistas restringiram ao texto — seus elementos e estruturas, conteúdo, processo criativo e características — o olhar crítico, excluindo dessa visão o contexto histórico em que o texto foi escrito ou foi lido, a intenção ou a biografia do autor, os processos políticos e sociais vigentes que envolviam a própria obra ou o leitor. Ou, nas palavras de Schnaiderman:

A filosofia, a sociologia, a psicologia, etc., não poderiam servir de ponto de partida para a abordagem da obra literária. (...) do ponto de vista do estudo literário, o que importava era o priom, ou o processo, isto é, o princípio da organização da obra como produto estético, jamais um fator externo”. (Schnaiderman, in Franco Junior, in Bonnici e Zolin, 2003, pág.95)

Esta preocupação centrada e exclusiva ao texto, no processo de criação literária, contrastava com a crítica mais romântica praticada na época, que abordava o autor da obra, sua biografia e outras referências já citadas, como a filosofia e psicologia. Essa nova abordagem pode ser melhor observada se nos detivermos por um momento em alguns dos principais princípios da crítica formalista.

Princípios do Estudo Literário Formalista
Além da exclusividade da materialidade do texto como foco de estudo literário, era preciso definir o que consistia esse objeto de estudo. O que é e o que pode ser considerado literatura? A definição de literatura se apresenta mutante sob a ótica de diferentes correntes literárias. Zappone e Wielewicki citam Williams ao tratar da conceituação e descrição de literatura: “Esse é um sistema de abstração poderoso, e por vezes proibitivo, no qual o conceito de ‘literatura’ é ativamente ideológico.” (Williamns, in Zappone e Wielewicki, in Bonnici e Zolin, 2003, pág.19).

Para o formalismo, esse conceito ideológico que vem cunhar a definição de literariedade de um texto é evidenciado por Jakubinski e Chkloviski. Para os formalistas russos, existe uma distinção preponderante que caracteriza o texto literário. Uma distinção de processo construtivo e de linguagem, entre a linguagem poética e a linguagem prosaica. Enquanto a última é a ferramenta de comunicação cotidiana, com função referencial e utilitária, a primeira tem ênfase na desautomatização da percepção do receptor, exigindo do leitor uma leitura mais atenta e um maior comprometimento com o texto artístico. “O procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção”. (Chkloviski, in Franco Júnior, in Bonnici e Zolin, 2003, pág. 95). Chkloviski destaca a singularização do objeto. A arte, a visão e atuação do artista sobre determinado objeto, teria o poder de torná-lo único, singular. Através da arte, da literatura, o autor poderia tornar singular um dia chuvoso comum, por exemplo. Fazer dele lúgubre ou purificador. Desautomatizando a leitura, um objeto cotidiano passa a ser arte quando visto sob a ótica da linguagem poética, ao invés do simples utilitarismo da linguagem prosaica. O cerne da linguagem poética

é criado conscientemente para libertar do automatismo; sua visão representa o objetivo do criador e ela é construída artificialmente de maneira que a percepção se detenha nela e chegue ao máximo de sua força e duração”. (idem, pág.96)

Essa desautomatização da leitura de um texto literário se dá pelo estranhamento do texto. Na ótica formalista, a arte sempre causa estranhamento. O leitor não passa intocado pelo texto. Ele deve, de alguma forma, se comprometer com ele, nem que seja apenas se detendo com mais atenção em sua leitura. Isso implica em um texto artístico mais denso do que a linguagem cotidiana. A função poética torna o texto mais opaco, do que, segundo a teoria formalista, surge a literariedade do texto.

Assim, se destaca o predomínio da forma. O conteúdo apenas, já não basta para esta nova visão da arte. Mais do que com o “o que” ou o “por que”, o estudo da literatura passa a ter uma preocupação com o “como”.

Elementos Primordiais de Análise
Na busca por desvendar esse “como” do processo narrativo literário, Chkloviski (Franco Júnior, in Bonnici e Zolin, 2003, pág. 97) deslumbrou duas estruturas da narrativa sobre o qual se suporta o texto. A Fábula e a Trama. Enquanto a fábula é seria a simples descrição dos acontecimentos da narrativa, a trama é como se dá a elaboração desses acontecimentos na narrativa. Resgatando o parágrafo anterior, enquanto a fábula seria o “o que”, a trama representa o “como” o objeto é apresentado. A trama é, portanto, resgatando os primeiros princípios aqui apresentados, o “estranhamento” da fábula. É a ação poética sobre a mesma.

Dois elementos ainda se destacam na caracterização da narrativa. Motivo e Motivação atuam de forma bastante próxima. O motivo constitui-se no menor elemento que compõe a narrativa. São suas estruturas mais elementares, unidades temáticas que, agrupadas, dariam forma à fábula. A motivação é o sistema que gere e coordena esses motivos. É a forma como eles são dispostos e/ou apresentados na obra. Novamente, o “como” atuando sobre os “o quês” da narrativa. As maneiras como essa motivação coordena os motivos, são separadas em três vertentes por Tomachevski, cada uma de acordo com a proposta a que se destina.

A Motivação Estética ordena os motivos levando em conta a valorização da forma, o estranhamento, a literariedade da obra. A Motivação Realista preocupa-se mais com a verossimilhança do texto. Os motivos introduzidos no decorrer da narrativa devem ser os mais prováveis e plausíveis possíveis. A Motivação Composicional detém-se na composição dos elementos e divide-se em três linhas. A Funcional prega que cada motivo inserido no texto deve ter sua função. Se uma cadeira é descrita em um cenário, por exemplo, é porque terá um papel preponderante, ou ao menos importante, na narrativa. Os motivos são escolhidos por sua funcionalidade, pela maneira como atuarão na cena. Um a segunda linha dá importância à dinâmica da obra, ordenando os motivos para traduzir o tom necessário à narrativa. Por exemplo, o dia chuvoso citado no início desse ensaio. Os motivos podem ser trabalhos a torná-lo misterioso e sombrio, se este for o tom do texto. Uma terceira linha trabalha com a Falsa Motivação, um engodo que, através da ordenação dos motivos, induz o leitor a uma pressuposição para depois revelar-se o oposto.

Por fim, todos esses elementos — Fábula, Trama, Motivos e Motivação — são carregados e percorridos pelos personagens da narrativa. São estes os suportes dos motivos. E a abordagem formalista abarca a caracterização dos personagens em duas vertentes. Direta, quando o narrador ou algum personagem expõe essa caracterização, classificando o personagem como afável, destemido ou manipulador; ou Indireta quando as ações deste personagem no decorrer da obra acabam revelar suas características, sua índole.

Legado
O Formalismo Russo levantou questões polêmicas, em muito refutadas pelas teorias literárias mais modernas. Ainda assim, sua contribuição para literatura persiste no olhar acurado para o texto, para uma escrita e leitura mais aprofundadas. Na atenção aos elementos do texto e na valorização do processo criativo. O Formalismo influenciou e dialogou com outros movimentos ou grupos textualistas e continua dialogando com as teorias contemporâneas, mesmo após a breve e polêmica existência do Círculo Lingüístico de Moscou e da OPOIAZ.

Referências:
BONNICI, Thomas. ZOLIN, Lúcia Ozana; Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá. Eduem. 2003.
TROTSKI, Leon. Literatura e Revolução. Rio de Janeiro. Zahar. 1969.