terça-feira, 29 de abril de 2008

Silêncio

Outra do Duelo de Escritores, sob o tema silêncio. A votação tá rolando, se quiser participar, passa lá.



— Boa noite! — Abriu a porta e falou cantando, como de costume.

— Nossa, que dia puxado. Tô pregada!

Fechou a porta do quarto e foi guardando as coisas. Só aí o viu de fato.

— Ai, desculpa. Você também, né? Tá tudo bem? Não quer conversar?

Ele continuou esticado.

Sobre a cama, as pernas cruzadas, olhar disperso, expressão cansada.

Calado como sempre.

— Tudo bem, eu sempre falo por nós dois mesmo, né?

Riu e pousou a bolsa na penteadeira.

— O trânsito tava um caos de novo. Teve um acidente na marginal, o maior rolo. Tinha até uns moleques rondando a confusão, cara de que iam assaltar, sei lá. Ainda bem que não aconteceu nada. Ah, e lembra aquele projeto que eu falei semana passada? — Nem adianta fazer essa cara — Eu sei que você não põe muita fé, mas eu acho, ao menos achava, que ia dar certo. Enfim, o cliente pediu um monte de mudanças. Acho que não vai dar pra fazer nada esse fim de semana de novo. Fiquei de entregar o projeto alterado na segunda. Algum conselho?

Ele continuou quieto como sempre, cabeça baixa, cabelos pendentes. Era tarde, ela estava cansada e ele pelo visto não queria conversar hoje de novo. Seria melhor dormir mesmo. Quem sabe amanhã eles poderiam conversar. Quem sabe amanhã ele diria algo.

— Bom, se você não quer conversar acho que vou me trocar pra dormir.

Ele não esboçou nenhuma resposta. Por causa do frio, ela escolheu um moletom velho mesmo. Não achou que ele se importaria. Aproximou-se dele e olhou-o diretamente nos olhos. Nada. Apenas uma estátua. Sentou-se na beirada da cama, afastou as cobertas e deslizou para baixo dele. Sobre o corpo dela ele a olhava com aquele mesmo olhar triste e distante. Seminu, os braços abertos, encostado na parede. O rosto barbado com a coroa sangrando-lhe a testa. Como sempre, calado. Ele nunca dizia nada. Como se não estivesse lá. Em silêncio. Como sempre, em silêncio.

sábado, 19 de abril de 2008

Que olhos grandes você tem...


Ilustração de uma chapeuzinho vermelho. A base de um cartaz de festa, mas cuidei mais da ilustra mesmo, o fundo foi meio 'solto'. Não curti a luz das pernas, não consegui acertar no vetor e enchi o saco. De resto até curti.

domingo, 13 de abril de 2008

O Evangelho Segundo Jesus Cristo

Essa é uma análise da Cena da Barca, de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago. Foi apresentada como segue abaixo, durante a pós, à apreciação da Prof. Dr. Salma Ferraz, a mulher que manja tudo do tinhoso.


Antes de iniciar a análise da cena, é preciso esclarecer que esta estará fora de contexto, uma vez que o restante do livro ainda não foi lido. É possível que algumas das interpretações e leituras feitas a seguir sejam alteradas após a apreciação da obra completa, visto que os acontecimentos da Cena da Barca remetem e se relacionam a outras passagens do livro. Mas vamos à análise.

Toda história precisa de um cenário sobre a qual irá se desenrolar. Comecemos, pois, por aí. Manhã. A primeira palavra da cena já evidencia o início, o começo, a aurora de um novo momento para o protagonista. Algo está para acontecer, mas nem o próprio protagonista pode vislumbrar perfeitamente o quê. Um sentimento turvo, nublado, como a manhã de nevoeiro que inicia a cena. Na seqüência, Jesus deixa a vila de pescadores e parte sozinho, numa barca, para “o invisível que era o centro do mar” onde encontrará Deus e o Diabo. Essa transição da vila para mar nos remete a duas leituras: a) Jesus deixando os homens, e b) a troca dos elementos, da terra para a água, do visível ao invisível. Comecemos pela primeira. Jesus deixa os homens de forma semelhante à que abandonará a sua humanidade, abraçando sua divindade. É uma barca, qual a de Caronte, cujos homens não podem pegar. Ele cruza a fronteira – as águas, tais quais as do Aqueronte – que separa os homens de Deus. E quanto a nossa segunda leitura, vemos Jesus deixando a terra, sólida, firme, estável e partindo para a instabilidade, a insegurança, os caprichos do mar. Deixa a humanidade com a qual se identifica e entende, e passa a encarar a divindade, voluntariosa, instável, desconhecida e profunda como o mar. Jesus encontrou suas contrapartes no mar, sozinho, longe dos olhos do mundo, no silêncio. É no silêncio e na solidão que se encontra Deus. E o Diabo. Outro fato de destaque neste cenário, em que Jesus descobre o seu propósito – cena decisiva e de importância fundamental na história da personagem – é o fato de localizar-se no meio do mar e não no alto de alguma montanha ou colina, como seria de praxe nos relatos bíblicos. O mar, também, como o constata Deus, é como o deserto. E Jesus passa 40 dias no mar. Como foram os 40 dias no deserto. Em ambos os casos, 40 dias de tentações. Mas a diferença primordial: na Cena da Barca, Deus é o Tentador, não o Diabo. Outro detalhe relevante – determinante até – é o cuidado com que o autor constrói o ambiente da própria barca. Fazendo uma análise proxêmica da cena, temos Jesus se lançando ao mar, na barca, no início da narrativa. Ele senta-se no banco de proa (na parte da frente do barco) deixando o banco de popa vazio. Tomando os remos ele leva a barca em direção a seu destino. Remando, portanto, de costas para seu destino. Ele, apesar de se direcionar a Deus, mantém-se sempre voltado para a margem, para a terra, para os homens, dando as costas para Deus, para o mar, para sua divindade. Já no centro do mar, ele fica frente a frente com Deus – uma posição de interlocução e debate, bem diferente daquela com que está com Simão, seu amigo, lado a lado, ombro a ombro, na barca. Ele está frente a frente, encarando Deus e sua própria divindade. É o confronto de Cristo. Eis que, como leviatã, surge das águas – as mesmas aonde Jesus foi encontrar Deus - o Diabo. Mas mais importante: quando “se diria que ia chegar do outro lado”, inesperadamente, o Diabo chega por estibordo – o lado direito da embarcação. Ora, estando Deus no banco de popa, de frente para Jesus, voltado para a frente do barco, o Diabo chega pela direita de Deus, e ali se senta. É o Diabo que está “à direita de Deus-Pai Todo-Poderoso”, não Cristo. E o Diabo se instala na borda da barca. É tão pouco homem (que fica fora da barca, na margem) tão pouco Deus (que fica dentro da barca), está na borda, no limite entre ambos. Não bastasse, senta-se exatamente entre Jesus e Deus, entre homem (Jesus ainda não aceitou sua divindade) e Deus, o centro da balança, a parte neutra – e não má, visto que Bem e Mal ficam a cargo de Deus. E em sua neutralidade, nem a barca pende. Nem para um lado, nem para outro. E ficam na barca: Jesus, como um pescador; Deus, como um rico e ornamentado judeu; e o Diabo, como um pastor de roupas simples. Os três, numa paródia da Santíssima Trindade, completada pela terceira pessoa, Cristo. Quando Jesus retorna do mar, quando já aceitou sua divindade e seu papel nos planos de Deus, temos o inverso do início da cena. Jesus agora está voltado para o mar, para sua origem divina, para Deus e dá as costas às margens, à terra, a sua humanidade, à qual retorna agora como Filho de Deus.

Agora, com o cenário já desenhado, passemos a outro elemento essencial de qualquer narrativa: as personagens. As quais, por questões didáticas e de facilidade de leitura, tomaremos uma a uma, fazendo correlações quando necessário. Comecemos pelo protagonista.

Jesus começa tão homem quanto quaisquer dos pescadores. Levanta-se da esteira, olha o mar e fala à mulher. Já na barca, Jesus mostra-se sempre consciente do poder de Deus, mas não deixa de desafiá-lo, provocá-lo, numa insubmissão em busca de respostas, como a de Jó. Jesus admite sua “parte no contrato”. A palavra contrato, e termos legais como cláusula, lei, documento, pacto, acordo, aliança, tratado, surgem com freqüência, colocando Jesus no posição de negociador com Deus (a parte com a clara vantagem contratual) aos olhos do Diabo, que se interpõe quase como um mediador. Até o momento que se encontra na negociação, Jesus é muito mais humano que divino, afirmando inclusive, com as suas próprias palavras “Sou um homem”. A sua origem divina é posta em dúvida inclusive por Deus: “como não tinha nenhum (filho) no céu, tive de arranjá-lo na terra”. Por outro lado, na seqüência Deus diz que Jesus encarnou, como se fosse um ser celeste em corpo de homem. Essa dicotomia entre homem e deus é presente em toda a cena, mas se destaca no meio do mar, como um período transitório entre o Jesus-homem do início da manhã e o Filho de Deus depois dos 40 dias. Jesus se mostra, além de insubmisso, um astuto negociador, obrigando Deus a confrontar-se com o mal que causará aos homens, por páginas e páginas de martirizados e sofredores. Por fim, Jesus se mostra resignado e aceita as condições do acordo que não pode negar: morrerá na cruz, como seu pai José, para ampliar a influência de Deus (como morriam os cavaleiros feudais para ampliar as terras e influências de seus senhores) e em troca teria a glória da qual poderia se beneficiar no céu. Ainda assim, respondendo a Deus a cerca das mortes nas Cruzadas diz: “não valeu a pena o sacrifício”. A que sacrifício se referia: ao dos cruzados apenas ou ao seu próprio?

Quanto ao Diabo, se destaca por sua marginalidade, pelo seu trânsito entre os mundos. Ele vive à margem – e vem da margem (pág 367) – participando de maneira complementar aos desígnios de Deus. É até certo ponto adversário, mas nem de longe a encarnação ou fonte do Mal. Vejamos sua estréia na cena. Ele surge do silêncio, incógnito, de dentro do nevoeiro. Vem a nado, de dentro da água – a água aonde Jesus foi encontrar Deus, o elemento da divindade – mas ainda no mesmo parágrafo o autor cita “viera de tão longe, da margem, queremos dizer”. Margem onde se encontram os homens, onde a terra é firme, segura, o elemento da humanidade. Aqui fica outro detalhe para o complemento oportuno do autor. Quando cita que o Diabo veio de longe, esclarece: “da margem, queremos dizer”, supondo que o leitor poderia imaginar que este longe, fosse outro lugar (ou plano). Também fica claro, pela sua chega resfolegante, que o visitante não era assim tão íntimo do meio aquático (divino). Já falamos de sua chega à direita de Deus e de como senta-se entre este e Jesus, mas, quando vemos o Diabo surgir do nevoeiro, ao longe, o vemos em uma forma bestial – o “porco com as orelhas esticadas para fora da água”. Porco, o animal impuro para o judaísmo. Lembrando que Deus se apresenta aqui como um rico judeu. Mas a medida que se aproxima, percebe-se que o visitante se assemelha a um homem e, quando o vemos de perto, vemos que é a imagem e semelhança de Deus. E ao chegar diz “Cá estou eu também”. As mesmas palavras citadas por Jesus e Deus quando se encontraram, seguidas do “também”, mostrando que o Diabo, de alguma forma, já acompanhava a conversa. O Diabo, chamado de Pastor, pastoreou Jesus por quatro anos, em comum acordo com Deus, até que o mandou embora do rebanho. É ele, também, que fala a Jesus que é filho de Deus, como um anjo mensageiro. Jesus, com esse acordo, vê que os homens são sempre enganados tanto por Deus como pelo Diabo. O Diabo, afinal, ainda que não seja Deus, está sempre à margem deste, sempre junto, pois “tudo que interessa Deus, interessa o Diabo” e nem mesmo Deus pode afastar o Diabo propriamente dito, apenas as “arraias-miúdas que o Diabo tem a seu serviço”. Assim que se instala, Pastor parece não se interessar com a conversa, negando a afirmação de Deus e retomando, ao menos na aparência, o papel de antagonista, daquele que nega a Deus. Mas o Diabo, ao contrário de Deus, é quem se compadece de Jesus e dos homens, se mostra piedoso, chega a oferecer-se para salvar toda a humanidade do mal, do sofrimento, do pecado. Se coloca, ele e não Cristo, como o Salvador dos homens. Aqui diz finalmente: “Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus”, revelando sua face de Tentador, mas não dos homens; de Deus, como o fez em Jó.

Deus também se caracteriza como uma personagem complexa, com toque da construção helênica das divindades. Tem maneirismos humanos, seu poder, apesar de avassalador encontra limitações, rende-se a tentações de expansão, mostrando pouco importar-se com os mortais ou com os meios necessários para atingir seus objetivos. É o lado humano, tão presente nas divindades gregas, que também sustenta o Deus de Saramago. Este deixa de lado os vendavais e pirotecnias tão presentes na bíblia para mostrar-se – ao menos para Jesus e o Diabo – com a face dos homens, de um rico judeu. Apesar dos ornamentos requintados, calça sandálias rústicas, mostrando “que não deve ser pessoa de hábitos sedentários” (e, a considerar pelas matanças, catástrofes e sangue derramado, realmente não era). As primeiras trocas de palavras entre Jesus e Deus não têm a mesma importância dos assuntos tratados na presença do Diabo. Falam de banalidades ou coisas das quais ambos já têm ciência. Ao que parece Deus ganha tempo a espera do Pastor. Ainda antes da chegada deste, fala que precisava de um filho na terra, expondo algumas das limitações de seu poder, pois precisa dos homens; e uma falta de descaso com estes, que serão usados impunemente, à custa de suas dores, sangue e sofrimento. Deixa claro, ainda, que o sucesso ou a vitória dos deuses – note-se o plural – é conquistada pelos homens. Os deuses usam os homens como ferramentas, animais de carga, soldados descartáveis. Deus mente e manipula os homens, como o faz com sua própria lei, colocando em xeque a sua própria honra – se é que honra é algo que cabe aos deuses. Na ladainha das mortes Deus cita nomes como números de bingo, enfadado, falando “outros, outros, outros, idem, idem, idem”. Para o Deus maquiavélico de Saramago, que, como dá a entender o Pastor, “inventou o pecado e o castigo, e o medo que há neles sempre”, todos são iguais, indiferentes. Esse Deus não parece se tocar pela tristeza dos homens e só se mostra triste quando constata os limites de seus poderes: “a culpa tenho-a eu, que não alcanço a chegar onde me buscam”. “Mas Deus é Deus, não tem remorsos”. É um Deus que não permite que dele se duvide, que exige – como o Deus bíblico – sangue para alcançá-lo.

Após os cenários e personagens, a narrativa ainda precisa de um elemento para transpô-la aos códigos lingüísticos, literários ou de comunicação que darão corpo à história: o narrador. O texto de Saramago tem uma caracterização peculiar. Os diálogos são apresentados no corpo dos parágrafos, sem a devida pontuação, de forma quase descompromissada. Uma vez que o leitor habitua-se com a estrutura, ela, aliada ao diálogo coloquial das personagens, transmite uma fluidez que destoa da carga “apocalíptica” do assunto tratado pelo trio na barca. No lugar das longas e rebuscadas orações das Escrituras, os diálogos são dinâmicos, de frases curtas, como as usadas cotidianamente, afastando a história dos púlpitos dourados da Igreja e levando-a àquela vila de pescadores nevoenta. Tirando a capa cerimonial das personagens, elas se mostram vestidas de traços humanos, como os deuses, heróis e semi-deuses gregos. O texto ainda extrapola a obra em si, com citações e referências de outros autores como, obviamente, os livros bíblicos (em especial Jó), mitologia grega, referência ao Islã e notadamente a Fernando Pessoa e seus heterônimos. Pessoa, que era português, como Saramago, admirado pelo último e contra a clássica Igreja Romana, o que o encaixaria perfeitamente com o teor da obra de Saramago, que, em um de seus romances anteriores ao Evangelho, já havia escrito sobre um dos heterônimos de Pessoa.

A passagem onde emerge a figura de pessoa, no entanto, ainda me foge à compreensão. Talvez por não ser da área de letras ou simplesmente por não carregar a bagagem e as referências necessárias à compreensão (e por não ter lido ainda todo o Evangelho) me ficam ainda em aberto lacunas sobre as duas vozes misteriosas que se pronunciaram do nevoeiro e impuseram, até a Deus e o Diabo, medo. Aqui, sou eu que me encontro em meio ao nevoeiro. Talvez seja o último aspecto da narrativa a ser abordado. Após o cenário, as personagens, o autor e seus recursos literários, é preciso um leitor que também consiga decodificar os signos da narrativa.

domingo, 6 de abril de 2008

A Ilha sem Memória

Como falei lá no Duelo de Escritores, o tema Amnésia gera várias reflexões e tem ainda muita coisa pra escrever sobre Olvidar. Sistema penal, velhice, comércio, etc. Mas isso é ser feito com mais tempo e sem a preocupação de fazer um texto curto. Pretendo recomeçar a escrever isso direito, do zero, pra ver onde vai chegar. Mas aí embaixo está o que foi postado lá no Duelo.

Quando deixei Dublin no barco do Capitão Swift, esperava viver as aventuras que o fizeram famoso. Quando lhe disse que queria fazer uma viagem a um lugar inesquecível, ele apenas sorriu um sorriso irlandês e deixou o vento estufar as velas.

Chegamos a Olvidar em menos de duas semanas. A ilha não era grande e logo desembarcamos. A primeira surpresa já foi no porto. Livros. Em que outro porto do mundo os trabalhadores carregariam livros em seus afazeres? E, no entanto, lá estavam eles, consultando seus livros e cadernos no píer. Só mais tarde meu capitão me pôs a par dos fatos. Olvidar era uma ilha sem memória. Por alguma razão a população tinha dificuldade de registrar a memória recente. Pouco depois da puberdade essa habilidade ia definhando até tornar-se praticamente nula. Basta que durmam uma noite para esquecerem tudo o que viveram no dia anterior. Eis o porquê dos livros e cadernos. Cérebros de celulose, arquivos de memórias, agendas e diários. Passavam boa parte do dia anotando tudo o que lhes acontecia, fatos, pensamentos, intenções. E outra boa parte era gasta relendo o que já haviam escrito, consultando alguma memória mais antiga, seja de alguns dias ou vários anos. Era essa amnésia coletiva que ditava a vida em Olvidar.

Os relacionamentos, por exemplo, tornavam-se complicados, uma vez que não era possível lembrar-se do consorte no dia seguinte. Naquela ilha o amor tinha o ritmo intenso e efêmero das paixões. Uma vida sem bodas, mas repleta de primeiros encontros. Conheci um casal que, determinados a permanecerem juntos, criaram um engenhoso sistema. Toda noite dormiam juntos, nus, e com uma página de caderno que dizia que eram casados e contava sua história. Outra cópia dessa página ficava fixada na porta do quarto, que permanecia fechada. Ao acordarem, viam o companheiro ao lado e presumiam que haviam passado a noite juntos. Logo viam a página do caderno e lembravam, melhor seria “descobriam”, que eram casados. Se um deles não dormisse em casa, ao lado do outro, ou mesmo se um deles pegasse no sono por alguns minutos durante o dia, tudo se perderia e eles nem saberiam. Exceto talvez, por uma consulta fortuita em seus cadernos, talvez tarde demais para reatar um casamento esquecido. Ao menos eu devo imaginar que as mulheres não devem brigar com os maridos quando esses esquecem alguma data.

Não bastasse as dificuldades de relacionamento, ainda havia os resultados dessas relações. Não era incomum uma mulher acordar pela manhã e descobrir-se grávida de vários meses. E visto que era virtualmente impossível que os pais se lembrassem de seus filhos, todo cidadão de Olvidar era responsável por qualquer criança na ilha. Toda criança encontrada em casa, na rua, ou em qualquer outro lugar deveria ser protegida e educada como o próprio filho. Creches foram criadas para que as crianças pudessem ser levadas para maior segurança.

A medida que cresciam, as crianças, que ainda possuíam memória, é que ajudavam os adultos. Pela capacidade de ainda reter memórias, os indivíduos como maior potencial na ilha eram os jovens, entre 15 e 17 anos. Já desenvolvidos de corpo e ainda não desprovidos de memória. Alguns desses jovens se tornaram grandes heróis de seu povo, construindo ou atingindo grandes feitos para a o povo Olvidar. Claro que ninguém lembrava de seus feitos, nem mesmo eles. Igualmente havia aqueles que se aproveitavam dessas habilidades apenas em causa própria e se tornaram contraventores cujos crimes, em geral, acabavam esquecidos. Inclusive por eles.

Há muito ainda que escrever sobre esta ilha e seus costumes, mas já é tarde e o dia foi cansativo. Amanhã pela manhã retorno a esses escritos para contar um pouco mais sobre essa ilha inesquecível.