Essa é uma análise da Cena da Barca, de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago. Foi apresentada como segue abaixo, durante a pós, à apreciação da Prof. Dr. Salma Ferraz, a mulher que manja tudo do tinhoso.
Antes de iniciar a análise da cena, é preciso esclarecer que esta estará fora de contexto, uma vez que o restante do livro ainda não foi lido. É possível que algumas das interpretações e leituras feitas a seguir sejam alteradas após a apreciação da obra completa, visto que os acontecimentos da Cena da Barca remetem e se relacionam a outras passagens do livro. Mas vamos à análise.
Toda história precisa de um cenário sobre a qual irá se desenrolar. Comecemos, pois, por aí. Manhã. A primeira palavra da cena já evidencia o início, o começo, a aurora de um novo momento para o protagonista. Algo está para acontecer, mas nem o próprio protagonista pode vislumbrar perfeitamente o quê. Um sentimento turvo, nublado, como a manhã de nevoeiro que inicia a cena. Na seqüência, Jesus deixa a vila de pescadores e parte sozinho, numa barca, para “o invisível que era o centro do mar” onde encontrará Deus e o Diabo. Essa transição da vila para mar nos remete a duas leituras: a) Jesus deixando os homens, e b) a troca dos elementos, da terra para a água, do visível ao invisível. Comecemos pela primeira. Jesus deixa os homens de forma semelhante à que abandonará a sua humanidade, abraçando sua divindade. É uma barca, qual a de Caronte, cujos homens não podem pegar. Ele cruza a fronteira – as águas, tais quais as do Aqueronte – que separa os homens de Deus. E quanto a nossa segunda leitura, vemos Jesus deixando a terra, sólida, firme, estável e partindo para a instabilidade, a insegurança, os caprichos do mar. Deixa a humanidade com a qual se identifica e entende, e passa a encarar a divindade, voluntariosa, instável, desconhecida e profunda como o mar. Jesus encontrou suas contrapartes no mar, sozinho, longe dos olhos do mundo, no silêncio. É no silêncio e na solidão que se encontra Deus. E o Diabo. Outro fato de destaque neste cenário, em que Jesus descobre o seu propósito – cena decisiva e de importância fundamental na história da personagem – é o fato de localizar-se no meio do mar e não no alto de alguma montanha ou colina, como seria de praxe nos relatos bíblicos. O mar, também, como o constata Deus, é como o deserto. E Jesus passa 40 dias no mar. Como foram os 40 dias no deserto. Em ambos os casos, 40 dias de tentações. Mas a diferença primordial: na Cena da Barca, Deus é o Tentador, não o Diabo. Outro detalhe relevante – determinante até – é o cuidado com que o autor constrói o ambiente da própria barca. Fazendo uma análise proxêmica da cena, temos Jesus se lançando ao mar, na barca, no início da narrativa. Ele senta-se no banco de proa (na parte da frente do barco) deixando o banco de popa vazio. Tomando os remos ele leva a barca em direção a seu destino. Remando, portanto, de costas para seu destino. Ele, apesar de se direcionar a Deus, mantém-se sempre voltado para a margem, para a terra, para os homens, dando as costas para Deus, para o mar, para sua divindade. Já no centro do mar, ele fica frente a frente com Deus – uma posição de interlocução e debate, bem diferente daquela com que está com Simão, seu amigo, lado a lado, ombro a ombro, na barca. Ele está frente a frente, encarando Deus e sua própria divindade. É o confronto de Cristo. Eis que, como leviatã, surge das águas – as mesmas aonde Jesus foi encontrar Deus - o Diabo. Mas mais importante: quando “se diria que ia chegar do outro lado”, inesperadamente, o Diabo chega por estibordo – o lado direito da embarcação. Ora, estando Deus no banco de popa, de frente para Jesus, voltado para a frente do barco, o Diabo chega pela direita de Deus, e ali se senta. É o Diabo que está “à direita de Deus-Pai Todo-Poderoso”, não Cristo. E o Diabo se instala na borda da barca. É tão pouco homem (que fica fora da barca, na margem) tão pouco Deus (que fica dentro da barca), está na borda, no limite entre ambos. Não bastasse, senta-se exatamente entre Jesus e Deus, entre homem (Jesus ainda não aceitou sua divindade) e Deus, o centro da balança, a parte neutra – e não má, visto que Bem e Mal ficam a cargo de Deus. E em sua neutralidade, nem a barca pende. Nem para um lado, nem para outro. E ficam na barca: Jesus, como um pescador; Deus, como um rico e ornamentado judeu; e o Diabo, como um pastor de roupas simples. Os três, numa paródia da Santíssima Trindade, completada pela terceira pessoa, Cristo. Quando Jesus retorna do mar, quando já aceitou sua divindade e seu papel nos planos de Deus, temos o inverso do início da cena. Jesus agora está voltado para o mar, para sua origem divina, para Deus e dá as costas às margens, à terra, a sua humanidade, à qual retorna agora como Filho de Deus.
Agora, com o cenário já desenhado, passemos a outro elemento essencial de qualquer narrativa: as personagens. As quais, por questões didáticas e de facilidade de leitura, tomaremos uma a uma, fazendo correlações quando necessário. Comecemos pelo protagonista.
Jesus começa tão homem quanto quaisquer dos pescadores. Levanta-se da esteira, olha o mar e fala à mulher. Já na barca, Jesus mostra-se sempre consciente do poder de Deus, mas não deixa de desafiá-lo, provocá-lo, numa insubmissão em busca de respostas, como a de Jó. Jesus admite sua “parte no contrato”. A palavra contrato, e termos legais como cláusula, lei, documento, pacto, acordo, aliança, tratado, surgem com freqüência, colocando Jesus no posição de negociador com Deus (a parte com a clara vantagem contratual) aos olhos do Diabo, que se interpõe quase como um mediador. Até o momento que se encontra na negociação, Jesus é muito mais humano que divino, afirmando inclusive, com as suas próprias palavras “Sou um homem”. A sua origem divina é posta em dúvida inclusive por Deus: “como não tinha nenhum (filho) no céu, tive de arranjá-lo na terra”. Por outro lado, na seqüência Deus diz que Jesus encarnou, como se fosse um ser celeste em corpo de homem. Essa dicotomia entre homem e deus é presente em toda a cena, mas se destaca no meio do mar, como um período transitório entre o Jesus-homem do início da manhã e o Filho de Deus depois dos 40 dias. Jesus se mostra, além de insubmisso, um astuto negociador, obrigando Deus a confrontar-se com o mal que causará aos homens, por páginas e páginas de martirizados e sofredores. Por fim, Jesus se mostra resignado e aceita as condições do acordo que não pode negar: morrerá na cruz, como seu pai José, para ampliar a influência de Deus (como morriam os cavaleiros feudais para ampliar as terras e influências de seus senhores) e em troca teria a glória da qual poderia se beneficiar no céu. Ainda assim, respondendo a Deus a cerca das mortes nas Cruzadas diz: “não valeu a pena o sacrifício”. A que sacrifício se referia: ao dos cruzados apenas ou ao seu próprio?
Quanto ao Diabo, se destaca por sua marginalidade, pelo seu trânsito entre os mundos. Ele vive à margem – e vem da margem (pág 367) – participando de maneira complementar aos desígnios de Deus. É até certo ponto adversário, mas nem de longe a encarnação ou fonte do Mal. Vejamos sua estréia na cena. Ele surge do silêncio, incógnito, de dentro do nevoeiro. Vem a nado, de dentro da água – a água aonde Jesus foi encontrar Deus, o elemento da divindade – mas ainda no mesmo parágrafo o autor cita “viera de tão longe, da margem, queremos dizer”. Margem onde se encontram os homens, onde a terra é firme, segura, o elemento da humanidade. Aqui fica outro detalhe para o complemento oportuno do autor. Quando cita que o Diabo veio de longe, esclarece: “da margem, queremos dizer”, supondo que o leitor poderia imaginar que este longe, fosse outro lugar (ou plano). Também fica claro, pela sua chega resfolegante, que o visitante não era assim tão íntimo do meio aquático (divino). Já falamos de sua chega à direita de Deus e de como senta-se entre este e Jesus, mas, quando vemos o Diabo surgir do nevoeiro, ao longe, o vemos em uma forma bestial – o “porco com as orelhas esticadas para fora da água”. Porco, o animal impuro para o judaísmo. Lembrando que Deus se apresenta aqui como um rico judeu. Mas a medida que se aproxima, percebe-se que o visitante se assemelha a um homem e, quando o vemos de perto, vemos que é a imagem e semelhança de Deus. E ao chegar diz “Cá estou eu também”. As mesmas palavras citadas por Jesus e Deus quando se encontraram, seguidas do “também”, mostrando que o Diabo, de alguma forma, já acompanhava a conversa. O Diabo, chamado de Pastor, pastoreou Jesus por quatro anos, em comum acordo com Deus, até que o mandou embora do rebanho. É ele, também, que fala a Jesus que é filho de Deus, como um anjo mensageiro. Jesus, com esse acordo, vê que os homens são sempre enganados tanto por Deus como pelo Diabo. O Diabo, afinal, ainda que não seja Deus, está sempre à margem deste, sempre junto, pois “tudo que interessa Deus, interessa o Diabo” e nem mesmo Deus pode afastar o Diabo propriamente dito, apenas as “arraias-miúdas que o Diabo tem a seu serviço”. Assim que se instala, Pastor parece não se interessar com a conversa, negando a afirmação de Deus e retomando, ao menos na aparência, o papel de antagonista, daquele que nega a Deus. Mas o Diabo, ao contrário de Deus, é quem se compadece de Jesus e dos homens, se mostra piedoso, chega a oferecer-se para salvar toda a humanidade do mal, do sofrimento, do pecado. Se coloca, ele e não Cristo, como o Salvador dos homens. Aqui diz finalmente: “Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus”, revelando sua face de Tentador, mas não dos homens; de Deus, como o fez em Jó.
Deus também se caracteriza como uma personagem complexa, com toque da construção helênica das divindades. Tem maneirismos humanos, seu poder, apesar de avassalador encontra limitações, rende-se a tentações de expansão, mostrando pouco importar-se com os mortais ou com os meios necessários para atingir seus objetivos. É o lado humano, tão presente nas divindades gregas, que também sustenta o Deus de Saramago. Este deixa de lado os vendavais e pirotecnias tão presentes na bíblia para mostrar-se – ao menos para Jesus e o Diabo – com a face dos homens, de um rico judeu. Apesar dos ornamentos requintados, calça sandálias rústicas, mostrando “que não deve ser pessoa de hábitos sedentários” (e, a considerar pelas matanças, catástrofes e sangue derramado, realmente não era). As primeiras trocas de palavras entre Jesus e Deus não têm a mesma importância dos assuntos tratados na presença do Diabo. Falam de banalidades ou coisas das quais ambos já têm ciência. Ao que parece Deus ganha tempo a espera do Pastor. Ainda antes da chegada deste, fala que precisava de um filho na terra, expondo algumas das limitações de seu poder, pois precisa dos homens; e uma falta de descaso com estes, que serão usados impunemente, à custa de suas dores, sangue e sofrimento. Deixa claro, ainda, que o sucesso ou a vitória dos deuses – note-se o plural – é conquistada pelos homens. Os deuses usam os homens como ferramentas, animais de carga, soldados descartáveis. Deus mente e manipula os homens, como o faz com sua própria lei, colocando em xeque a sua própria honra – se é que honra é algo que cabe aos deuses. Na ladainha das mortes Deus cita nomes como números de bingo, enfadado, falando “outros, outros, outros, idem, idem, idem”. Para o Deus maquiavélico de Saramago, que, como dá a entender o Pastor, “inventou o pecado e o castigo, e o medo que há neles sempre”, todos são iguais, indiferentes. Esse Deus não parece se tocar pela tristeza dos homens e só se mostra triste quando constata os limites de seus poderes: “a culpa tenho-a eu, que não alcanço a chegar onde me buscam”. “Mas Deus é Deus, não tem remorsos”. É um Deus que não permite que dele se duvide, que exige – como o Deus bíblico – sangue para alcançá-lo.
Após os cenários e personagens, a narrativa ainda precisa de um elemento para transpô-la aos códigos lingüísticos, literários ou de comunicação que darão corpo à história: o narrador. O texto de Saramago tem uma caracterização peculiar. Os diálogos são apresentados no corpo dos parágrafos, sem a devida pontuação, de forma quase descompromissada. Uma vez que o leitor habitua-se com a estrutura, ela, aliada ao diálogo coloquial das personagens, transmite uma fluidez que destoa da carga “apocalíptica” do assunto tratado pelo trio na barca. No lugar das longas e rebuscadas orações das Escrituras, os diálogos são dinâmicos, de frases curtas, como as usadas cotidianamente, afastando a história dos púlpitos dourados da Igreja e levando-a àquela vila de pescadores nevoenta. Tirando a capa cerimonial das personagens, elas se mostram vestidas de traços humanos, como os deuses, heróis e semi-deuses gregos. O texto ainda extrapola a obra em si, com citações e referências de outros autores como, obviamente, os livros bíblicos (em especial Jó), mitologia grega, referência ao Islã e notadamente a Fernando Pessoa e seus heterônimos. Pessoa, que era português, como Saramago, admirado pelo último e contra a clássica Igreja Romana, o que o encaixaria perfeitamente com o teor da obra de Saramago, que, em um de seus romances anteriores ao Evangelho, já havia escrito sobre um dos heterônimos de Pessoa.
A passagem onde emerge a figura de pessoa, no entanto, ainda me foge à compreensão. Talvez por não ser da área de letras ou simplesmente por não carregar a bagagem e as referências necessárias à compreensão (e por não ter lido ainda todo o Evangelho) me ficam ainda em aberto lacunas sobre as duas vozes misteriosas que se pronunciaram do nevoeiro e impuseram, até a Deus e o Diabo, medo. Aqui, sou eu que me encontro em meio ao nevoeiro. Talvez seja o último aspecto da narrativa a ser abordado. Após o cenário, as personagens, o autor e seus recursos literários, é preciso um leitor que também consiga decodificar os signos da narrativa.