Mais autorretrato pra fazer ao menos uma postagem este ano.
Loucura não é enxergar os gigantes, mas sim, não enfrentar os moinhos.
blowin' in the wind
Cruzou pela porta e entrou no apartamento com a cabeça leve, não tanto pelas cervejas, mais pelos momentos. Trancou a porta atrás de si com um certo pesar. Com uma saudade, talvez. Como quem olha pelo vidro molhado da janela numa tarde de chuva. Deixou tocar uma música que há muito não ouvia, mas que sempre carregava consigo. Abriu a geladeira, já há algum tempo vazia, que soprou-lhe um bafo frio de confirmação. Da estante próxima sacou um Jack London que tanto combinava com a trilha, sem mesmo ter certeza de a que trilha se referia. É difícil ter alguma certeza quando elas são sopradas pelo girar de um catavento.
A lembrança do brinquedo lhe prendeu a atenção. Estava na carroça do mesmo homem de quem já escrevera em uma matéria para o jornal. Achou, na ocasião, que apresentava o velho ao mundo que passava por ele sem o perceber. Recebeu congratulações do editor, tapinhas nas costas, achou que havia encontrado algo. Ele, que se deteve sobre o velho com uma perspicácia imaginária e costumazmente arrogante, nunca havia lhe reparado o catavento amarelo. Mas ela reparou. Tomou-o pela mão e disse: "olha". Ele olhou, e sentiu, e viu o catavento soprar tanta coisa naquele céu que ela disse ter tanto dela. Pensou dizer algo mas o catavento soprou aquilo também para o céu. O que quer que fosse, ficou lá, pregado no escuro feito estrela sobre o rio.
Sob uma sombra ali perto, o velho sorria despercebido. Vendo seu catavento admirado, achou a cena bonita.
Imagem do Expresso das Ilhas |
Tardes de Mornas
Tardes mornas
de mornas
do Verde.
Cantando a memória
do muxoxo das ondas a quebrar
nos cascos de pedra
da nau que deixei para trás.
Cabo de mornas
e morenas
Que choram as saudades
das saudades
do Cabo Verde.
Gota a gota
cada
gota
cai
feito a lágrima de quem ficou
feito fonte
onde a falta é farta
onde o afeto escapa
por entre os dedos
que restaram
que procuram
os que se foram
e a palma vazia
tenta reter
algo que se esgota
gota
a
gota
a
gota
a
gota
Para acompanhar a ilustra do mês da passado.
Canto Flamenco
Me miras así
hecho serpiente.
[empieza el palmear flamenco]
Pero no soy presa.
Un pecho andaluz
no acepta corriente.
Oye!
entonces mi palmear
Oye entonces
el tablao redoblar
Soy hija del sur
hija de la mar
Mi canto gitano
és mi llorar.
Soy hija del sur
hija de la mar
Mi taconeo
...
hace el mundo sonar.
Oye!
entonces mi palmear
Oye entonces
el tablao redoblar!
Chanson à le vent froid
tous les jours
j'entends le vent froid
me demander où est tu
pas ici, pourquoi?
et toujours
que j'entends le vent froid
chanter ta chanson
je me demande: pourquoi?
Où est elle, vent froid
cherchez elle lá-bàs
et dit elle
que je manque sa voix
Où est elle, vent froid
cherchez elle lá-bàs
l'amenez ici
j'attends chez moi
au fin du jour
quand je suis chez moi
je me souvient que tu
ne rentrera pas
au fin de tout
quand je suis lá
je regarde la pierre
je suis chez toi
donc j'entends le vent froid
ensemble, nous sommes lá
on pleure sur toi
nous sommes seules dejà
Mais uma vez não sei bem o que tô fazendo. Correções são aceitas :)
Quando adentrei este Coliseu Tropical, achei que pisava as areias de uma arena. Quando saí, percebi que eram as areias de uma ampulheta.
Coliseu Tropical é o mais recente livro de Viegas Fernandes da Costa. Traz a mesma prosa poética comum aos trabalhos anteriores do autor, na maioria das vezes abrindo mão dos versos. A obra conta com um interessante trabalho gráfico da Editora Kotter, mas o ponto frágil fica por conta de escolhas de diagramação e soluções de tipografia que provavelmente passaram pela revisão, e “arranharam” um pouco a estética do miolo do livro. A bonita capa e o projeto gráfico compensam em parte estes — na visão deste leitor — deslizes. Mas tirando uns poucos momentos de quebra na imersão da leitura, o texto não chega a sofrer muito com isso.
O livro é uma obra sem dúvida atual e se propõe a combater (n)o seu tempo. Mas esse Coliseu que digladia com seu presente, ganha mais vida quando se entrega às reminiscências. Como no antigo palco romano, é por baixo da luta que se escondem as engrenagens e a riqueza que sustenta a arena.
A obra inicia agressiva com o tom crítico que parece guiar o livro, apontando ora os desgovernos que regem este conturbado 2021, ora as desigualdades que (já não) nos surpreendem em cada esquina, apontando chagas ou ideias incinerados sob uma lua de fogo.
Deste primeiro grupo de textos destaco justamente o tocante Lua de Fogo com as cinzas de um Pantanal ardente, e o sensível O Coveiro, que exuma a poesia do menino que sonhava “plantar pessoas na terra”. Apesar do lirismo, mesmo nestas peças o tom crítico e o olhar contemporâneo é presente. A partir da metade do livro, no entanto, ainda que o eco deste tom inicial frequentemente se faça ouvido, Coliseu Tropical tende a se voltar mais para dentro, e a obra parece crescer.
Reflexo de paisagens do Vale e do Litoral Catarinense, sótãos e velhas máquinas de escrever tomam as areias deste Coliseu, lembrando as areias que correm em uma ampulheta. “A memória”, diz o autor, “é, de algum modo, a falta que se faz presente”. E ela se faz presente em aforismos, poucos versos e na lembrança de personagens conhecidos daqueles que acompanham a obra do autor, como Ernesto ou o Onitorrinco, que aparecem “como barco insepulto ancorado na areia de um deserto que já fora mar”.
Como o homem de areia que dá título a um dos textos, é das areias que se ergue este Coliseu Tropical. Mas como o personagem, não cabe na ampulheta e vê a poesia nascida dos intestinos do mundo enquanto todos a buscavam na paisagem do horizonte. Viegas encontra poesia na paisagem da memória antes que ela, inevitavelmente, se dissolva no vazio. Como o homem de areia.
A caminho de casa, perdi um poema.
Culpa, não ponha na moça de pernas bonitas,
que é toda ela um poema.
Tampouco no velho olhando pra cima, cigarro na mão,
que procurava, ele também, nos galhos da árvore,
um poema maduro a colher.
Onde foi — onde foi — que deixei cair o poema?
Olho na boca-de-lobo pra ver se um verso não se foi na sarjeta.
Tento lembrar se não foi a buzina que me estilhaçou as estrofes.
Se não se perdeu no emaranhado de fios no topo do poste
que enfeia esse céu onde despontam as estrelas primeiras.
Como fui — como fui — perder um poema?
Se há tanto não me cruza um!
Poema, esses dias, põe-se raro.
Diz, quem entende, que é a perda do habitat.
A gente entra com máquina, trabalho e barulho.
Estafa, trabalho e entulho.
E logo o poema já não tem onde viver.
Mas eu vi — eu vi — um poema.
Aonde foi, por onde se meteu, como se perdeu,
não sei.
Agora passo os dias, repasso os passos,
e torço para que em alguma esquina lhe calhe de novo aparecer.
Para que eu tenha ao menos
a chance de lhe dizer
adeus.
Enquanto eu não me decido a encerrar esse espaço, mais uma ilustra pra tapar buraco aqui: um deus (ou um psicólogo muito badass).
eu acesso aquela página
onde te encontrei
o teu silêncio ecoa o meu
silêncio entoa
o teu