sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Valquíria e a última serpente

Em dezembro passado, o Jornal de Santa Catarina solicitou-me um conto curto para o caderno especial sobre o fim do mundo, teoricamente previsto pelo calendário maia. Naquela oportunidade, o texto remetido e que saiu no jornal foi A Primeira Pedra. Eu havia escrito, no entanto, um outro que nunca foi apresentado. Mexendo nos arquivos acabei esbarrando com ele novamente. Coloquei-lhe um título e deixo-o aqui para dar uma atualizada:

Valquíria e a última serpente

Quando Valquíria acordou, pressentiu que algo havia mudado.Estava ainda sonolenta quando lembrou-se. Levantou ligeiro, o sol mal tinha saído, ao contrário do marido que saíra já há algumas horas para chegar a tempo ao trabalho. Calçou as pantufas rosas com florzinhas desgastadas, fechou o roupão com um nó apertado e correu até a porta. Assustou-se com o que viu. O mundo estava, de fato, terminando. Era como se tivessem retirado a fina película que cobria a realidade. Não havia muito que ela reconhecesse como antes. Olhou com certo desprezo as próprias mãos, tornadas garras depois dos anos de trabalho repetitivo nas máquinas de costura. Portão a fora viu o vizinho acuado pelo próprio carro que, feito uma besta, abria e fechava o capô, um ronco seco do motor e um brilho doentio nos faróis. Fumaça escura a nublar a cena. Fugiu, deslocada, em direção ao centro da cidade, evitando os transeuntes trôpegos. Na praça, um punhado de pessoas se acotovelava ao redor de uma fonte que jorrava para o alto rajadas de comprimidos multicoloridos. Chegando na avenida à beira rio viu, na outra margem, o velho barco tombado. Agora percebia, pelas fissuras no casco, que já estava podre e corroído por dentro havia muito. Foi quase sem fôlego que conseguiu atingir, ainda desnorteada, a ponte de ferro no final da rua. Começou a cruzar a construção se afastando do caos e, lá no meio, bem acima do rio, viu sua sombra descabelada projetada nas águas e entristeceu-se. De repente, percebeu uma outra forma avultar-se lá embaixo, logo abaixo da superfície do rio. Um corpo longo e serpentiforme. Apenas uma enorme e sinuosa sombra passando sob a água. O vento tentava sem sucesso afastar o som das sirenes e do caos. Valquíria subiu no parapeito. Viu uma de suas pantufas planarem lá do alto, sem destino, acima das águas. Atirou-se e caiu com um estrondo no rio. Depois de alguns segundos apenas, com um estrondo ainda maior, ergueu-se das águas uma enorme serpente emplumada. No seu dorso, agarrada às plumas, vinha montada Valquíria. Cabelos molhados em desalinho, roupão aberto, o pijama velho colado aos seios flácidos. E um sorriso descabido singrando a face. Cavalgava a serpente do fim do mundo.