segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte IV

Era uma curiosa tripulação aquela do Cirella. Era formada por homens de diversas localidades, umas mais próximas de nosso porto, outras mais distantes. Alguns de outros países, o que era uma fonte de orgulho do capitão Tino, que se vangloriava do fato vez por outra. Dentre os marinheiros, eles variavam bastante em termos de experiência. Junto a homens cujas faces marcadas e mãos calejadas denunciavam os anos no mar, vi vários que aparentavam uma inexperiência quase infantil que, à minha primeira impressão, foram tomados por aprendizes nos ofícios a bordo de um navio. Alguns dentre a tripulação ainda se mostravam jovens valores e, apesar da aparente pouca idade, se mostravam extremante habilidosos no manejo dos cordames, ajustes das velas e nas tarefas diárias. Dentre eles ainda se destacavam homens distintos que claramente aproveitaram suas viagens para carregar e enriquecer suas mentes além dos porões dos navios em que trabalharam, e alguns cujos braços, mãos e pernas eram mais exigidos do que uma mente afiada. Uma tripulação variada e sem dúvida alguma superior em número, experiência e qualidade, às quais eu já trabalhara até então. Dentre eles não poderei me deter para apresentar todos, mas caso o mar que agora nos ameaça e o nevoeiro que agora nos cega não nos sejam complacentes, é preciso que se faça justiça e que se lembre do nome de alguns de meus companheiros. Se o tempo me permitir irei aos poucos apresentando os diversos personagens com quem convivi nesses meus três anos a bordo do Cirella. Se não me for possível, espero que estes homens sejam lembrados por aqueles que deixamos para trás, seguros em terra firme.

Além de Tino Sadiano, o capitão desta amaldiçoada embarcação, um homem aparece como seu braço direito e homem de confiança: Rastani Cain. Um homem carrancudo e diminuto, de compleição física frágil e um rosto fino coberto por uma rala barba acinzentada. O queixo adunco e os olhos fundos marcam os contornos do crânio por sob a pele do rosto. Lembro que já então o homem se mostrava frio no contato com quase todos na embarcação e, segundo diziam meus companheiros, fora dela também. Rastani e Sadiano eram parceiros de anos e isso conferia, desde então, mais poder à voz fina e esganiçada do conselheiro. Apesar disso, Rastani não passava de uma sombra de seu capitão. Como fui descobrir com o passar dos anos, o homem não estava qualificado para os exigentes trabalhos no mar, em que por vezes, é preciso ficar por diversos meses sem aportar, ou lutar contra ondas bravias, ou manobrar heroicamente em combate ou em fuga de corsários. O mar é exigente com aqueles que acolhe. O homem que pretende viver sobre as ondas precisa ser talhado para isso. Rastani Cain não é um destes homens. Quase tudo do pouco que sabe sobre a vida em um barco mercante aprendeu a bordo do Cirella. Mas isso não abala a confiança de nosso capitão em seu conselheiro. De fato, de algum modo, creio que a fortalece, deixando Rastani como o responsável pelo controle dos lucros do Cirella, controlando entrada e saída de mercadorias e valores. Com o passar do primeiro ano entre meus companheiros, aprendi a conviver com a sombra de Rastani se esgueirando pelo navio e apenas vez por outra me pegava praguejando contra ele. Na verdade, naquele primeiro ano e no início do ano seguinte, não tive muito contato com Rastani. Passava a maior parte dos meus dias junto aos marinheiros. Além destes homens o Cirella conta com marujos responsáveis pela carga e mantimentos; um cozinheiro; nosso experiente cirurgião, Frei Renalier; e o Imediato Bogus Napolle, um homem do mar, que comanda os marinheiros e responde pelo navio na falta do capitão. A embarcação não conta com apoio militar, sendo que em caso de necessidade, a própria tripulação se põe às armas, procedimento comum na marinha mercante que faz as rotas do Cirella. Felizmente não foram muitas as vezes em que se fez necessário empunhar armas a bordo, de modo que nosso bom Frei Renalier se ocupava mais com seus sermões e com as pequenas enfermidades cotidianas do que com ferimentos de batalha. No entanto, temo que nossa situação atual ainda vá dar muito trabalho ao nosso sacerdote. Se não cuidando dos enfermos, orando por nossas almas.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte III

Em resumo, naquela entrevista, o capitão Tino me disse que já conhecera um pouco do meu trabalho nas embarcações menores na qual eu trabalhara e que eu havia sido muito bem recomendado pelo seu ex-contramestre. Relatou-me os feitos do Cirella sob sua tutela e me fez uma descrição pormenorizada das qualidades da embarcação. Destacou o valor da equipe sob seu comando e seus próprios méritos em unir tais homens. Por fim me levou a cada canto de seu navio me apresentando cada detalhe, cada câmara e seu funcionamento. Deixei o convés sob uma lua alta refletida nas águas e, após me despedir do capitão Tino Sadiano, caminhei pelo cais por algum tempo rememorando o que vira a bordo do Cirella e os rumos que iam tomando minha vida nas rotas mascates. Os dias se passaram e meu contato com o Cirella e seus tripulantes se mantiveram um pouco mais próximos a partir daquela visita. Cruzava com marujos e, volta e meia, com o próprio capitão em tavernas ou no próprio cais enquanto acompanhava o carregamento de especiarias para as viagens. Cerca de um ano se passou e esta rotina se manteve mais ou menos inalterada. Neste ínterim, me mantive a par das notícias das viagens do Cirella e, tendo amigos que trabalhavam no navio, não me foi custoso acompanhar o desenvolvimento dos negócios do capitão Tino. Mas foi apenas no sexto mês do ano seguinte que eu deixaria definitivamente o barco no qual eu trabalhara até então e iria me juntar à tripulação do Cirella. As conversas e negociações não duraram mais do que uma semana e logo eu estava contratado. Na época, ficara acertado que eu acompanharia a embarcação na condição de cartógrafo em uma viagem a um pequeno arquipélago onde seriam comprados grãos e óleo. Nesta experiência, que deveria durar não mais de um mês, eu seria avaliado. Caso o capitão se arrependesse de minha contratação ou algum atrito impedisse minha continuidade no Cirella, eu retornaria, por minha própria conta, em uma embarcação menor que conseguiria em uma das ilhas. Porém, caso minhas habilidades se mostrassem úteis durante esta viagem e minha adaptação a estas novas rotas fosse satisfatória, eu seguiria sob as ordens do capitão e junto à tripulação para o oriente, onde a carga seria vendida por valores mais rentáveis e eu passaria então a fazer parte definitivamente da tripulação, como cartógrafo e navegador. Meus ganhos ficaram acertados um pouco acima do eu ganhava nas rotas mascates, mas o que realmente me impulsionava era o mar. Lançar velas em novas rotas, embalado por novos ventos e conhecer novos portos. Naquele momento, o horizonte me pareceu mais tangível. E eu iria ao seu encontro.

No dia do embarque fui novamente apresentado à embarcação, que já mostrava algumas melhorias e benfeitorias desde que eu a vira pela última vez. Fui também oficialmente apresentado à tripulação, que de modo geral me recebeu muito bem, até porque dentre os homens, alguns eu já conhecia e de outros já me tornara amigo em tempos passados. Dois dias depois, com o Cirella já preparado e com ventos favoráveis zarpamos e deixamos o cais. Com as grandes velas enfunadas a embarcação logo atingiu uma velocidade que dificilmente se manteria por muito tempo nos barcos menores nos quais eu trabalhara anteriormente. A nau vencia as ondas com rapidez e logo adentraríamos águas até então novas para mim. O sol se fazia alto, mas com o vento do oceano a temperatura era realmente agradável. Como me era prazerosa a sensação! O cheiro salgado do mar, o manto verde se estendendo até o horizonte, o sol brilhando em um céu sem nuvens. O mar. Ao qual me lançara tantas vezes e ao qual sempre soube que sempre retornaria. No alto do mastro principal, acima das velas, o estandarte do Cirella tremulava ao vento. A bandeira trazia um grande escudo cinza sobre o fundo azul escuro. E sobre este escudo, no mesmo tom azul da bandeira, a imagem de uma ave majestosa balançava ao vento, com a enorme cauda de longas penas, o longo e delgado pescoço e a cabeça encimada por um pequeno penacho. E assim o Cirella seguia. Com o céu limpo, ventos a favor e mar calmo, eu não tinha muitos problemas em traçar as melhores rotas nem em determinar nossa localização. Aos poucos eu ia conhecendo melhor meus companheiros de navio, enquanto atingíamos águas ainda não exploradas por mim.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte II

Meu primeiro contato com o Cirella se deu cerca de um ano antes de meu embarque junto aos homens da nau. 1665 já passava da metade quando conheci pessoalmente o capitão Tino Sadiano. A notícia de que o capitão pretendia lançar-se a novas águas e tinha necessidade de um cartógrafo a bordo me chegou numa noite em uma taverna pelo ex-contramestre do Cirella. Curioso em conhecer a tal embarcação e já pensando em a quais mares ela iria se lançar, fui ao ancoradouro em um fim de tarde para falar com o capitão, o qual eu tivera o cuidado de avisar de minha chegada através de um dos estivadores que trabalhava no carregamento do navio. Fui recebido por um marinheiro sem patente, visto que os oficiais estavam em terra e aguardei até ser chamado à cabine de comando do Cirella. Lá fora o sol estava se pondo no mar calmo e uma brisa fraca soprava do oceano para a terra. No alto do mastro principal a bandeira azul e cinza adormecia pendurada pela falta de ventos mais fortes. As velas dos dois grandes mastros estavam recolhidas e apenas algumas lanternas iluminavam o convés. Através das janelas eu podia ver o bruxulear das luzes no interior da cabine, mas não ouvia som algum vindo de lá. Aguardei do lado de fora e me detive observando o convés e as carrancas de adornavam o mastro principal logo abaixo da bandeira. Na proa uma enorme carranca se projetava à frente da nau lembrando um galo levemente disforme de bico aberto e um pescoço curvo e longo que seguia à frente do navio até mergulhar nas águas sob o casco. No castelo de popa se elevava uma pequena amurada de madeira adornada por entalhes que lembravam penas da cauda de um pavão, que se estendiam por todo o castelo. Fui desperto pelo abrir da porta da cabine, ao que o marinheiro que havia me recebido fez-me sinal para entrar. Obedeci e, passando por ele, a porta se fechou atrás de mim, deixando o marujo do lado de fora. A cabine do capitão era relativamente grande para um barco daquele tamanho e era adornada por objetos visivelmente valiosos, mas dispostos de forma tal que o conjunto da decoração parecia embaralhado, bagunçado e confuso. As paredes eram adornadas por desenhos e pinturas náuticas, um espelho retangular e um quadro com a imagem do próprio capitão em trajes finos e usando um chapéu escuro que se destacava por uma longa pena verde que se projetava para cima e para trás, como é moda dos menestréis teutônicos. Próxima à parede imediatamente à frente da porta pela qual eu entrara se encontrava uma pesada mesa de madeira que guarnecia uma muito bem acabada cadeira de espaldar alto, recoberta por uma grossa manta anil sobre a qual se sentava a autoridade máxima dentro do Cirella. O capitão vestia uma nobre capa de cor escura. As calças que trajava, no entanto, não contribuíam para a imagem que eu esperava de um homem em sua posição. Por sob a mesa se percebiam as barras curtas mal cortadas que deixavam à mostra as canelas pelo vão entre a barra da calça e o cano da bota, que se mostrava baixo demais para cobrir devidamente as pernas. Botas que eram adornadas por grossas fivelas que lembravam o ouro, mas que se encontravam em estado de conservação já prejudicado, apresentando abrasões e escoriações aqui e ali. O homem tinha a barba bem feita e os olhos escuros como os cabelos. O nariz um tanto alargado, a pele escurecida pelo sol e os olhos levemente puxados lembravam os índios nativos do Novo Mundo, apesar de que eu duvide de alguma descendência daquele povo. Com o ar mais solene que pôde o capitão indicou uma cadeira à frente de sua mesa, na qual me sentei. O capitão Tino se recostou em sua cadeira, inclinando-a para trás e, pousando uma mão sobre o abdômen, começou uma explanação que levou cerca de quase vinte minutos ininterruptos, a qual não relatarei na integridade a fim de preservar o tempo que me escorre rapidamente como a água que está sendo bombeada para fora deste navio. Meu auxiliar acaba de me confirmar que o alagamento foi estancado, mas as avarias foram graves e já perdemos um homem na operação de contenção de danos. Meus companheiros parecem perder as esperanças aos poucos. Na nossa embarcação e especialmente em nosso capitão. Creio que só o que nos mantém ainda lutando, só o que temos, é uns aos outros. E se for para ser tragado pelo oceano, não poderia pensar em companhia mais louvável do que os homens com quem divido meus dias a bordo do Cirella. O tempo urge e a cera da minha vela escorrendo me lembra que as horas que me restam fazem o mesmo. Voltemos pois a história.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte I

Esse texto foi escrito há bastante tempo. Não lembro há quantos anos. É um pouco extenso, apesar de ter sido escrito praticamente numa paulada só, por isso vou postá-lo aos poucos. Provavelmente não vai fazer sentido para a maioria, por falta de contexto, mas é tb um pouco esse o objetivo. Segue aí. E na sequência posto as "cenas dos próximos capítulos".

Não sei quanto tempo nos resta. A água já tomou um dos compartimentos inferiores e os homens lutam para impedir que ela se alastre enquanto o avariado Cirella balança à deriva nessas águas desconhecidas. A noite escura como eu jamais vi e o denso nevoeiro que nos cobre há quase uma semana impedem-me de reportar a localização precisa deste cárcere flutuante. Receio pela sanidade do capitão Tino e creio que o diário de bordo do Cirella já não faça justiça aos passos que nos trouxeram até aqui. Portanto transcrevo apressadamente os eventos que culminaram nesta malfadada e fria hora na esperança de que aqueles que, por ventura ou acaso, encontrarem estas palavras façam justiça à memória das almas que se encerram nesta sombria embarcação. Se por acaso não me for possível terminar estes relatos antes do fim, despeço-me já de meu leitor. Adeus. A chama consome a vela e devo logo começar minha história.
— Roderico Ferolli. Cartógrafo e navegador do Cirella.



Três anos se completarão desde que me juntei à tripulação do Cirella. Porém, mesmo antes daquela época já havia ouvido falar do barco mercante, ainda que muito superficialmente. Apesar de não se comparar em tamanho ou em viagens com os barcos das principais rotas e que traziam as melhores mercadorias, o Cirella estava naquela época entre as maiores e principais embarcações da região. Em todos os casos, consideravelmente maior do que o barco mascate no qual eu trabalhara no par de anos anterior. Pelo seu porte, a embarcação do capitão Tino Sadiano também podia se lançar em rotas mais vantajosas e aportar em paragens onde negociam-se as mercadorias por valores mais rentáveis. O Cirella também era conhecido pelas carrancas que exibia na proa e nos mastros. Esculpidas em madeira em tamanhos desproporcionalmente grandes para a nau, as peças empregavam uma aparência quase cômica à embarcação, sendo inclusive, motivo de piadas entre alguns dos marinheiros de outras embarcações, estivadores e trabalhadores que viviam às voltas nos portos próximos. Diziam, porém, que as carrancas eram motivo de orgulho especial para o capitão, a despeito da aparência estapafúrdia de algumas das esculturas. Quanto ao capitão do Cirella, também pouco o conhecia, exceto por alguns boatos sussurrados entre as docas e estalagens próximas ao porto. Contava-se que o capitão havia se lançado à vida ao mar há não muitos anos e que neste pouco tempo havia conseguido algum sucesso que o colocava entre os principais navios daquelas águas, alguns com capitães vários anos mais experientes. Naquela época, enquanto ainda era segundo em comando em uma embarcação mascate, eu soubera que o temperamento do meu futuro capitão já lhe trouxera alguns pequenos atritos com capitães de outras embarcações e em alguns portos. Porém, como soube, nenhum de maior importância. Exceto por um que agora me vem à memória. Contava-se que antes de comandar o Cirella o capitão Tino trabalhava como marinheiro em outra embarcação com vários outros homens na mesma posição. Alguns dos quais, também se tornaram capitães de seus próprios navios, alguns mercantes, outros baleeiros, outros de guerra. Dentre estes estava o atual capitão do baleeiro O Caçador, Earl Dymath. Contam os marujos destas bandas, que durante a vigília do então marinheiro Tino Sadiano, este acordava frequentemente os companheiros aos gritos por avistar algo entre as ondas, apenas para depois verificar-se que de nada se tratava. Àqueles pelos quais ouvi a história, não sabiam dizer se esses avisos falsos eram propositais ou apenas confusões do então marujo. O que se conta é que, cansado dos constantes avisos infundados, Dymath fora tirar satisfações com Tino e que logo se engalfinharam em um combate de violência tal que o atual capitão do O Caçador fez-se ao mar, e foi preciso um grande esforço para que ele não se perdesse entre as ondas. Desde então esta história corre de porto em porto, de embarcação em embarcação e, ao que parece, a inimizade perdura entre ambos os capitães desde então. Mas verdade seja dita, boatos e histórias tendem a crescer ao som do mar e as bocas não são tão confiáveis como os olhos, especialmente as dos marinheiros. Portanto deixemos de lado as histórias colhidas por estes ouvidos, e passemos àquelas vislumbradas por estes olhos.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Treze de Agosto

Olhava para o céu de agosto procurando algo entre a poluição e os vãos do viaduto sobre a cabeça. O pescoço levantado revelava uma barba mal feita e as roupas esfarrapadas tinham a cidade impregnada nas tramas. E a cidade, por sua vez, impregnava-se deles, entre os pés coloridos e pichados "veado" dos viadutos. Mas Seu Coelho não era veado. Só era pobre. Tinha o que lhe cabia na sacola de lona e as cores do viaduto.

— Olhando o quê, Seu Coelho?

Sempre lhe chamavam Seu Coelho. Nem era velho, mal passava dos quarenta. Mas a verdade é que aparentava mais, e ninguém nunca lhe perguntou sua idade.

— Lua cheia hoje. Não dá de ver por causa da fumaça, mas tá mais claro lá, ó. Lua cheia.
— E daí?
— É bonito, só. Mais bonito que o viaduto ao menos.
— Sai daí, homem, que tá ficando frio.

E Seu Coelho saiu e foi se juntar aos outros esfarrapados aos pés coloridos dos viadutos, em volta de uma sopa rala, surrupiada do abrigo cuja funcionária fez vista grossa por pena.

O farol alto de um carro projetou na parede as sombras negras dos esfarrapados. Animais acuados, alguns fugiram assustados, outros paralisaram. Os faróis baixaram, deixando só as luzes de cidade acesas. O capô trazia um felino prateado à frente. Seu Coelho, de orelhas em pé, junto aos outros homens, aguardou. A porta do motorista se abriu. Um homem magro saiu, metido num terno preto. Conferiu nas mãos uma folha de papel, olhando para os homens por cima das lentes dos óculos apoiados sobre o proeminente nariz adunco. Mirando Seu Coelho com olhos de rapina citou em uma voz gentilmente treinada:

— Senhor Jeremias Antônio Coelho.

O motorista revelava, nas mãos, para os homens curiosos, uma fotocópia da ficha do abrigo, com os dados médicos, cadastrais e uma fotografia 3X4 recente de Seu Coelho.

O homem coçou os já prateados fios da barba, adiantou-se, conferiu a ficha. De fato, era a ficha do abrigo. Levantou os olhos ao magro motorista, com o ronronar do carro ao fundo.

— Não se preocupe — disse o homem abrindo a porta traseira do automóvel — Ah! — continuou — antes que me esqueça, o abrigo pediu para entregar isso. Disseram que era para o custeio da viagem. Acho que faz parte do intercâmbio.

Seu Coelho abriu o envelope que lhe foi entregue, dentro, poucas notas de cinquenta reais. No interior do carro, o calor e o aroma de alguma massa recém assada pareciam convidativos.

— Vamos? Perguntou o homem de óculos.

Seu Coelho olhou para o céu e, entre vias de concreto e lufadas de fumaça, viu por um momento a lua espiar por trás das nuvens. Deu um suspiro profundo, quase de entrega, colocou o envelope no bolso, deu de ombros e entrou no carro. O mundo lhe passava pela cabeça.

Dentro do carro de bancos de couro, uma embalagem de uma pizzaria próxima o aguardava no banco traseiro.

O motorista olhou para trás por sobre o banco:

— A viagem não deve demorar muito, mas achei que poderia estar com fome. Peguei agora mesmo. Espero que não se importe, mas peguei um pedaço.

Seu Coelho balançou a cabeça, mas, antes que pudesse dizer "não tem problema", uma lâmina opaca subiu entre ele e a cabine do motorista. Só então percebeu que as janelas eram igualmente opacas. Uma música suave tocou enquanto o carro se pôs em movimento. Seu Coelho, lá dentro, abriu a embalagem de pizza, com uma fatia a menos, e tratou de aplacar o estômago ruidoso.

O carro rodava sem solavancos. Ao contrário da cabeça de Seu Coelho. Não sabia se deveria crer no motorista sobre o intercâmbio do abrigo. Já se imaginava atirado na entrada de outra cidade, jogado de novo no mundo para sair à procura de outro viaduto de pés pintados noutra urbe poluída para impregnar-lhe as roupas rotas. Imaginou-se, jogado na rua, já sem vida, um resto esfarrapado de gente. “Vazio de vida, mas ao menos de bucho cheio”, pensou. Deixou o pensamento pairar-lhe à mente sem medo e perguntou-se se já não estaria de todo esvaziado da vida. Já não ligava, apenas deixava-se levar, ao som da música, o embalar do couro, o sabor e o cheiro da pizza. Era o melhor momento que lhe havia aparecido há muito. Que viesse o que fosse, que ali lhe valiam os anos todos sob o concreto à caça de algo para comer. O felino prateado puxava o carro pela autoestrada guiado por uma lua cheia de agosto, que Seu Coelho não podia ver.

O som de cascalho sob as rodas e as curvas sinuosas revelaram que o motorista saíra da via principal. Seu Coelho imaginou um terreno ermo onde seu corpo descansaria coberto por ervas daninhas sem deixar saudade. Ignorou o pensamento e deixou-se invadir pela música. Recostou-se nos bancos macios e permitiu-se quase cochilar. A viagem de pouco de mais de uma hora fora o momento de maior conforto e prazer — e paz até — que havia tido nos últimos anos na rua. A mente estava calma, sublimando para um estado de sonolência, quando os freios suaves fizeram o carro parar.

Ouviu a porta do motorista se abrir. Passos do lado de fora. A porta traseira finalmente abriu para uma noite clara e iluminada por uma lua cheia brilhante num céu estrelado de poucas nuvens. O homem de óculos falou apenas "Chegamos, Senhor Jeremias".

Seu Coelho saiu do carro. Os sapatos velhos deram num chão de terra batida, cercado de um gramado bem aparado e um lago brilhante distante. A estrada se perdia numa espécie de pasto. Ao longe era possível ver a silhueta de uma cerca de madeira e ouvir o relinchar de algum cavalo. Uma casa grande, à frente, o aguardava. As paredes eram de pedra até cerca de um metro de altura. Acima disso, eram chapas de madeira nobre que se erguiam até o telhado de telhas acinzentadas. Um perdigueiro grande de cara escorrida veio cheirar-lhe as vestes. Num movimento brusco, retirou o focinho aguçado, agredido pelos restos de cidade agarrados às fibras puídas, e retornou para algum lugar atrás da construção. O motorista abriu a porta principal e fez um gesto convidando o passageiro a entrar na casa.

O assoalho rangeu em boas-vindas, dócil. Das arandelas escorria pela parede uma luz amarelada e a um canto, uma lareira crepitava confortavelmente com uma velha espingarda de caça decorando a chaminé.

— A sua estada, tenho certeza, será bastante confortável. Venha, deve haver um banho aguardando o senhor.

O motorista de nariz adunco acompanhou Seu Coelho até uma porta, que se abria para um banheiro coberto com uma parede coberta de arabescos e pastilhas de vidro ao redor do box. Do outro lado, uma banheira cheia de uma espuma fumegante aguardava.

— Fique à vontade. Chamarei alguém para... — fez uma pausa proposital — deixá-lo mais à vontade.

O homem saiu, deixando Seu Coelho só no banheiro. Um cheiro de eucalipto cobria o fedor das suas roupas. Pela estreita janela basculante, o luar espiava curioso. Não havia tranca na porta. Mas poucos pudores restavam para quem já tão pouco tinha. Seu Coelho tirou as vestes sujas, jogou-as a um canto, empilhadas, e meteu as pernas cansadas na água quente, submergindo o corpo castigado pelos anos na rua sob a espuma branca e perfumada. Recostou-se na banheira e pensou que se o jogassem morto e indigente num barranco qualquer não se importaria. Relaxou lembrando com certo humor que a espuma lembrava àquela que boiava fedida nos rios sob as pontes em que ele, também fedido, morava. Nem mesmo quando a maçaneta da porta desceu, ele saiu do seu estado de conforto. Só quando viu a mulher de branco entrar é que algum espanto lhe chegou.

Ajeitou-se o melhor que pôde, cobrindo-se com a espuma abundante. A loira devia ter uns 30 anos, tinha o cabelo liso amarrado em um coque atravessado por uma vareta de plástico, também branca. Ela olhou com um sorriso benevolente, mostrando-lhe nas mãos um roupão longo e branco, semelhante ao que ela usava. Pendurou a peça num cabide próximo sob o olhar atento de Seu Coelho. Abaixou-se para pegar o monte de roupas sujas revelando, pela fenda de seu roupão, uma perna longa e bem cuidada e um sugerido contorno de seio aparentemente nu, espiando pelo decote. Ela saiu fechando a porta atrás de si. Seu Coelho mirou o roupão pendurado, tentou relaxar na água quente e mergulhou, lavando os cabelos pastosos.

Passaram-se mais uns cinco minutos, talvez um pouco mais, até que a mulher retornou. Seu Coelho ajeitou-se na banheira, ainda sob a espuma, agora com os cabelos bem menos sebosos e sem o cheiro da cidade na pele. Ela se aproximou com passos curtos, ajoelhou-se ao lado da banheira e pegou a bucha sobre o aparador. Ensaboou o objeto, molhou-o na água e fez menção de esfregar as costas do homem.

— Não precisa. Adiantou-se Seu Coelho, preservando os pudores da moça.

Ela parou por um momento, olhou para ele, e pressionou a esponja contra o seu dorso puído. A esponja quente percorreu os ombros maltratados com suavidade, em movimentos lentos. Subiu o pescoço tisnado do sol, volta e meia retornando às águas quentes e espumosas da banheira. Seu Coelho foi deixando-se relaxar ao toque sutil da esponja, ao eventual toque das pontas alvas dos dedos longos. Dividiu com a mulher um silêncio cúmplice. Ela arregaçou a manga do roupão revelando um braço esguio e bonito. Mergulhou-o na espuma, percorrendo com a esponja cada vértebra das costas de Seu Coelho, contornando-lhe a lombar. Sob a espuma, o corpo desacostumado com um toque gentil ameaçava relembrar a virilidade que há tempo não provava.

A moça empurrou-lhe o peito delicadamente com a ponta dos dedos, para que se recostasse, molhou a esponja na água e começou a ensaboar-lhe o tórax.

Ele sorriu, apenas. Sentiu a esponja descer-lhe pelo abdômen, percorrer-lhe a lateral do tronco, esfregar-lhe a coxa. Sob a água, as mãos dos dois se encontraram. Ao toque, ela mirou-lhe os olhos pardos com os azuis dela. Sorriu — ou riu — sem pudores, mas parou o movimento. Ele, devagar, puxou-lhe a mão até sentir o toque da esponja onde queria. Ela roçou-lhe suavemente com a esponja. Levantou-se, olhou, de pé, para o homem deitado na banheira, soltou o cordão que amarrava o roupão e deixou a peça correr pelos ombros até cair no chão. Meteu as pernas longas dentro da banheira, uma depois da outra, e mergulhou a nudez nas águas quentes, contornando, por baixo da espuma, as pernas dele com as dela. Olhou por um momento para o homem a sua frente, pegou novamente a esponja e começou a ensaboar o próprio corpo, ignorando o companheiro de banheira. Seu Coelho ficou poucos minutos observando a moça de cabelos presos e corpo mergulhado na mesma água que o cercava. Com as mãos tocou-lhe as pernas lisas. Ela apenas o olhou e continuou a banhar-se. Ele se desencostou da banheira, levando as mãos às coxas da moça. Tudo para receber apenas mais um olhar, com o canto do olho. Num movimento quase brusco, com a paciência de quem vive à míngua sob os viadutos sem receber sequer um olhar de uma mulher como aquela, Seu Coelho tomou-lhe a esponja, espirrando com a violência do braço, um pouco de água para fora da banheira. O suficiente para espalhar a espuma, revelando um seio delicado coroado por uma auréola rosada e decorado com uma pequena tatuagem de um arco rebuscado ao lado de uma flecha, ornamentados por motivos tribais. Cobriu o seio da moça com a esponja, fazendo-a percorrer devagar, para baixo, o corpo arrepiado. Viu-a deitar a cabeça para trás e arquear as costas enquanto a esponja se perdia entre a espuma e as pernas da mulher.

Com um pulo, Seu Coelho projetou-se sobre a loira, transbordando a água a cada investida, transbordando emoções represadas, anos suprimidos, rugas precoces. A moça, capturada, subjugava-se às investidas brutas, à barba áspera, ao sabor das ruas que persistia na pele agora limpa. A cidade fica impregnada fundo, onde a água não alcança. Mas agora ela vinha à tona. Transbordava-lhe pelos poros, desprendia-se pelos pêlos, emergia-lhe à pele. A moça agarrou-lhe o pescoço com os braços, envolveu-lhe o lombo com as pernas e sentiu-se transbordar como a banheira. Seu Coelho continuou as investidas até que toda a cidade, toda a rua, toda a vida represada transbordasse também de si. E naufragou exausto nas águas que se acalmavam. Depois de uns dois minutos a moça levantou, em silêncio, vestiu o roupão novamente e saiu pingando pela porta sem tranca do banheiro.

Seu Coelho aguardou uns cinco minutos. Levantou-se, secou o corpo murcho, já não sabia se pela água ou pela vida, e vestiu o roupão branco com um pequeno gamo bordado no lado esquerdo do peito. Abriu, sem muita certeza, a porta do banheiro. No chão, a sua frente, ruas roupas aguardavam empilhadas e dobradas. Pegou-as, retornou ao banheiro e um minuto depois tornou a sair, vestindo as próprias vestes, cobertas com alguma nova essência que desconhecia, mas de aroma bem mais agradável. O homem magro de terno preto o aguardava na sala, em frente à lareira.

— Ah, Senhor Jeremias. — Disse sem emoção na voz ou no rosto. — Seu jantar está servido.

Acompanhou o homem a uma sala lateral onde uma refeição simples mas farta o aguardava. Seu Coelho já não perguntava nada, não esperava nada, não se importava com nada. Comeu com a pressa que se aprende na rua. Ao terminar, o mesmo homem de terno re-apareceu.

— Senhor Jeremias, acompanhe-me.

Seu Coelho obedeceu. Seguiu o homem até a sala onde este abriu a porta da rua. Seu Coelho parou por um momento. O homem de olhar de rapina fez um movimento de confirmação com a cabeça. Seu Coelho saiu pela porta e encontrou o mesmo carro que o trouxe, com a porta traseira aberta. O homem fez sinal para que entrasse no veículo. A lua alta brilhava cheia, retornando com uma lufada de vento o suspiro de Seu Coelho.

O carro serpenteou as curvas levando no ventre Seu Coelho que, lá dentro, não sabia o que pensar. Apreendeu-se imaginando que fim lhe esperava. Não creu na história do abrigo, mas tentava se tranquilizar relembrando que o que quer que o aguardasse, não poderia ser pior que retornar à rua. E de todo modo, havia valido a pena. Viveu numa noite o que não vivera sobrevivendo nos últimos anos. Ouviu com certo espanto o ruído familiar da cidade. O carro parou. Uma sirene soou não muito longe dali. A cidade, à noite, expirava ressonante e insone. A porta se abriu. Seu Coelho saiu e deu com um bairro distante, na periferia. O homem de nariz adunco cerrou a porta traseira, retornou ao posto de motorista e partiu seguindo o felino prateado que puxava o carro.

Uma hora depois, Seu Coelho chegava, a pé, junto aos pés coloridos escrito "veado" do viaduto que lhe servia por teto. Ao mesmo tempo em que, num casarão distante com um Jaguar estacionado em frente, um homem de terno negro e olhos de águia batia à porta de um quarto. Dentro do quarto a mulher loira, sentada na cama sob as caras cobertas, ajustou o robe cobrindo o seio tatuado e pôs de lado um balancete financeiro de uma filial empresarial. Retirando os óculos e colocando-os ao lado do cálice de vinho no criado-mudo, disse:

— Pode entrar.

O homem de terno abriu uma fresta na porta do quarto e polidamente perguntou:

— Senhorita Diana, estou indo me recolher. A senhorita deseja algo mais?

— Não, Tulius. Está tudo bem, obrigada. Boa noite.

— Obrigado. Boa noite, madame.